Apadrinhamento civil: Ser pai sem o ser

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Em vez de permanecer numa instituição, Catarina ganhou uma nova vida junto de uma família que a apadrinhou. É caso único na cidade de Lisboa. Conheça a sua história

Dita o dicionário que um padrinho é um protetor. E a definição assenta mesmo bem a Fernanda e José Manuel que, desde outubro de 2014, protegem Catarina (nome fictício), de 6 anos, como se fossem seus pais. E ela agradece-lhes com um sorriso franco, que revela o espaço deixado nas gengivas pelos dentes que já caíram.

Fernanda, 55 anos, fisioterapeuta, e José Manuel, 64, engenheiro civil, são realmente um caso único na cidade de Lisboa. Com eles, inauguraram-se os processos de apadrinhamento civil na Santa Casa da Misericórdia, uma figura jurídica criada em 2009.

Ainda nem fez seis meses desde que Catarina, duas trancinhas a prender-lhe o cabelo com a ajuda de um enorme laçarote vermelho, entrou nesta casa para ficar – mas parece que sempre dormiu na cama encostada à parede, onde está colado um grande Mickey. Na sala, a televisão está sintonizada nos desenhos animados do Ruca, mas a atenção da menina desvia-se para a máquina fotográfica que lhe capta os movimentos e os afetos. Em frente ao ecrã, arruma-se uma mesa e uma cadeira de plástico amarelo, a lembrar que nesta casa voltou a haver crianças. Fernanda tem duas filhas já adultas, de um primeiro casamento, assim como José Manuel. Já nenhuma das quatro vive com o casal e o neto, de dois anos, só aparece de visita. É dele e de Catarina a fotografia em cima da mesinha de apoio ao sofá.

Como trabalha em pediatria, Fernanda conheceu Catarina aos primeiros suspiros de vida, na Neonatologia, e logo ali surgiu uma empatia difícil de explicar. Nascera de 28 semanas, com várias patologias associadas. A mãe deu-a, de imediato, para adoção. Quando a bebé saiu do hospital, mudou-se para o lar Santa Joana Princesa, onde ficam os mais novos acolhidos pela Misericórdia. Fernanda continuava a vê-la nos frequentes tratamentos hospitalares. E, assim que pôde, inscreveu o agregado todo como voluntário para se tornar família-amiga da Catarina. Quis isso dizer que, aos 4 anos, passaram a tirá-la do lar aos fins de semana e nas férias. Não ficavam mais tempo com ela porque a menina continuava à espera de alguém que a adotasse.

Quando Catarina completou 6 anos, escolheram apadrinhá-la. “Quisemos mostrar-lhe o que era uma família”, explica o homem da casa, que ora é chamado de pai, ora de avô (ou também de Zé). O casal nunca esteve virado para a adoção, porque existem as filhas mais velhas de dois casamentos diferentes e, em termos de herança, a situação poderia tornar-se mais confusa.

“Até aos 18 anos somos responsáveis por ela e isso é que importa”, relativiza Fernanda que, desde os primeiros dias de vida da sua afilhada, sentiu, com as mãos e o olhar, um laço a uni-las para toda a vida.

Ser ou não ser

Catarina tem dificuldades de locomoção, uma paralisia no lado direito, dificuldades cognitivas e epilepsia. Baba-se com muita frequência, obrigando ao uso constante de babete. Insere-se, por isso, num grupo de crianças que muito dificilmente encontrará uma família para as adotar. Foi a pensar em meninas como Catarina que se criou o apadrinhamento civil. Só que esta figura jurídica não está a ter o eco que se esperava. “Pede–se que as pessoas estabeleçam uma relação como se fossem pais, para toda a vida, mas sem o serem”, resume Teresa Antunes, 47 anos, responsável desta área na Misericórdia de Lisboa.

Todas as crianças que não estejam com a família e que não tenham um projeto de vida que passa pela adoção – ou, como no caso da Catarina, não hajam candidatos para as adotar – estão aptas a serem criadas por padrinhos, na verdadeira e antiga aceção da palavra. O facto de a família biológica não ser completamente posta fora de jogo, assusta os potenciais interessados. Mas Teresa Antunes assegura que todas as normas definidas são salvaguardadas: “A forma como os contactos se processam fica estipulado num contrato reconhecido pelo juiz e pode sempre ser reavaliado.”

A mãe da Catarina nunca mostrou intenção de ter alguma relação com a filha, nem de saber com quem estava. Por isso, o casal faz a sua vida normal, sem prestar satisfações, levando-a para todo o lado. Passam fins de semana nas casas de Óbidos e Castelo Branco, visitam os padrinhos-avós e as quase-irmãs. “Estamos a educá-la como se fosse nossa filha”, garante Fernanda, enquanto a aconchega carinhosamente no seu colo.

O renascer do instinto maternal

As patologias de Catarina obrigam a um acompanhamento intensivo que se reflete em consultas de terapia ocupacional, da fala e fisioterapia. Normalmente, é José quem a leva aos médicos, enquanto Fernanda trabalha com a menina numa ginástica matinal e sempre que a apanha a jeito: “Ela pensa que estamos a brincar, mas aproveito e faço-lhe uns exercícios.” Também já começou a ensinar-lhe alguma grafia, como preparação para o primeiro ciclo que irá integrar no próximo ano letivo, em regime de ensino especial. Frequenta ainda aulas de natação e equitação.

Para esta nova aventura, 36 anos depois de ter sido mãe pela primeira vez, Fernanda tem o apoio e ajuda do marido e das filhas. E sente-se muito “feliz”, “tranquila”, “rejuvenescida ” e até ganhou novo instinto maternal, envolto numa maior sensatez. “Não me importo de não ir ao cinema para ficar com ela. Mas se quiser muito sair, uma das nossas filhas tomará conta dela, como já aconteceu.”

Fernanda e José não foram candidatos espontâneos, embora desempenhem as suas funções com nota máxima. No caso deste casal, os técnicos da Santa Casa, ao aperceberem-se da ligação que ambos tinham à menina, propuseram-lhes a via do apadrinhamento. E eles, como grande parte da população, desconheciam esta possibilidade, apesar de a Misericórdia já ter feito várias ações de informação. Quem por lá aparece, expõe sempre as mesmas dúvidas: confundem apadrinhamento com família-amiga ou com a ajuda a crianças em países subdesenvolvidos. A todos é entregue um panfleto explicativo, onde pode ler-se: “Apadrinhar uma criança ou um jovem representa uma entrega incondicional de afeto, contribuindo para o seu desenvolvimento num ambiente equilibrado e estável. Ao apadrinhar, está a criar laços afetivos para toda a vida. Aceita o desafio?

Apadrinhamento civil

ELEGÍVEIS Crianças e jovens com menos de 18 anos

CANDIDATOS Pessoas singulares ou inseridas numa família, a partir dos 25 anos

ACOMPANHAMENTO TÉCNICO Ao fim de 18 meses acaba

MOTIVAÇÃO Índole solidária e capacidade de estabelecer uma relação afetiva, sem que existam laços filiais

FILIAÇÃO A criança mantém os apelidos da família biológica

LAÇOS Pode haver contacto com a família biológica e ela saber com quem e onde vive a criança

CONTRATO É revogável

PODEM CONSTAR NO IRS COMO DEPENDENTES Constam como dependentes, tal como os filhos biológicos

Crianças institucionalizadas ganham amigos para a vida

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Alguma vez pensou que as crianças acolhidas em instituições não sabem o que é uma família, nunca foram às compras ao supermercado e não sabem o que é tempo sem fazer nada? O projeto Amigos p’ra Vida pretende dar apoio concreto e relacional a estas crianças.

Sofia Marques e o marido tornaram-se amigos de duas meninas que estavam numa instituição de acolhimento. Iam levando as irmãs para passeios ou fins de semana em sua casa. Quando voltaram para casa da mãe, o contacto manteve-se. «Uns meses depois convidou-nos para sermos padrinhos de batismo delas.»

Os quatro filhos do casal nasceram e sempre conviveram bem com as meninas. «Quando nasceram, elas já existiram e é como se fossem irmãs mais velhas. Não houve necessidade de se adaptarem a uma criança que vem de fora. Sempre tivemos a casa preparada para todos. Quando tivemos o terceiro filho é que tivemos de trocar de carro», conta a rir.

Projeto tem sido um sucesso
A história de Sónia e Sara serviu de inspiração ao projeto Amigos p’ra Vida. Joana Seabra Gomes, Joana Simões Correia e Sofia Marques são as responsáveis pela ideia que tem como suporte a Candeia. A associação começou, em 1991, por dinamizar campos de férias para crianças institucionalizadas e, atualmente, desenvolve atividades durante todo o ano.

Com os Amigos p’ra Vida, Joana Seabra Gomes explica que «a ideia é trazer às famílias a oportunidade de conhecer estas crianças e criar relações de amizade, mas numa perspetiva duradoura, para a vida e de acordo com a necessidade da criança». O projeto nasceu há cerca de um ano. Já se inscreveram 88 famílias, participam 16 instituições e há 39 crianças sinalizadas, das quais 22 têm relações de amizade com 20 famílias voluntárias.

Família biológica dá autorização
Teresa é mãe de uma menina com Amigos p’ra Vida. Os seus nomes são outros, mas a história é esta. A menina foi institucionalizada quando ainda era bebé e «não tinha noção do que era uma família». Durante algum tempo não pôde ter sequer ter visitas dos pais.
Na instituição «consideraram que estava em risco psicológico e precisava de ter a noção do que era uma família. Perguntaram-me se eu concordava com os Amigos p’ra Vida e concordei», recorda Teresa. Depois de Luísa voltar para casa, a mãe concordou que os amigos se continuassem a encontrar. «Não queria que ela ficasse com a sensação de perder aquela família. É bom para ela e ela gosta muito», afirma.
A ajuda concreta também tem sido útil. «Nas férias de Natal, os irmãos estiveram num centro de estudo, mas os voluntários não podiam ocupar-se dela. A família amiga ofereceu-se para ficar com a Luísa e tem estado lá.»

Tudo é possível
Mas que ajudas são possíveis nos Amigos p’ra Vida? Joana Seabra Gomes diz que pode ser um apoio «tipicamente de fim de semana, em que estes amigos funcionam como complemento à vida da criança e indiretamente à família biológica». Outro tipo de apoio destina-se às crianças com perspetiva de ficarem nas instituições até à idade adulta. «Têm pouca rede social e o que queremos é que tenham mais esta rede para terem um sítio para ir almoçar ao domingo, ou alguém que os aconselhe num primeiro emprego.» Ou que eventualmente venham a ser integradas na família.
Joana Simões Correia tem quatro filhos. A sua família tornou-se amiga de uma menina há um ano. A vida em família é essencial para crianças que sempre tenham vivido em instituições, como era praticamente o caso da amiga desta família. «É importante: “Agora vamos às compras”, porque nas instituições as crianças não vão às compras, as coisas aparecem feitas. “Agora vamos programar o que vamos fazer.” “Posso escolher o que vou fazer? Não tenho um plano de atividades?” “Podes fazer o que quiseres e podes andar pela casa toda, não tens de estar na sala A, B ou C.” Essas experiências são muito importantes. Poder ver como se vive em família. Ver que os membros da família, às vezes, discutem, zangam-se, e como é que resolve isso.»

Pode ler a reportagem completa na FAMÍLIA CRISTÃ de fevereiro de 2017.
Reportagem: Cláudia Sebastião
Fotos: D.R. e Cláudia Sebastião