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05.05.2019 | DN

Apadrinhamento: a lei que pode tirar mais crianças das instituições e que é ignorada há dez anos

Ana Mafalda Inácio

Foi criada e aprovada em setembro de 2009. Tinha como objetivo prevenir e combater a institucionalização. Aos padrinhos civis dava-se direitos e responsabilidades parentais, mas as crianças não perdiam a ligação à família. Parecia simples. Mas, em 2017, das mais de sete mil em acolhimento só 34 estavam encaminhadas para o apadrinhamento civil.
Há juízes de tribunais de menores que nunca a aplicaram, embora já tenham ouvido falar dela. Há procuradores que nunca a propuseram ou que já o fizeram e ouviram como resposta: “Não há candidatos.” E não voltaram à solução. Há técnicos de serviço social que até desconhecem que existe como lei há dez anos. Isto, não obstante todas as campanhas e ações de formação que percorreram o país para a divulgar. Falamos da Lei n.º 103 de 11 de setembro de 2009, que regulamenta o apadrinhamento civil.

A lei que muitos anunciaram como a que poderia retirar mais crianças das instituições, que mais poderia prevenir e combater a institucionalização, foi sacrificada à partida. E hoje, dez anos depois, o cenário é o mesmo de há dois, três ou cinco anos depois de ter sido aprovada: quase não há famílias candidatas e são muito poucas as crianças a quem o apadrinhamento civil é proposto como projeto de vida.

Basta referir que, em 2016 e 2017, das cerca de sete mil crianças que se encontravam acolhidas em instituições só 33 e 34, respetivamente, viram este regime ser proposto como solução para a sua vida. E, das mais de 200 que estavam em acolhimento familiar, só uma criança, em cada um dos anos, o recebeu também. Tais dados constam do relatório CASA (Caracterização Anual da Situação de Acolhimento das Crianças e Jovens) de 2017, o de 2018 ainda não foi divulgado.

Em 2017, das mais de sete mil crianças em instituições só a 34 tinha sido proposto o apadrinhamento como projeto de vida.

Os relatórios do Ministério Público dão conta de que, de 2013 a 2017, entraram apenas 122 ações tutelares por apadrinhamento civil, mas não é certo que todas se tenham concretizado, porque a homologação pode ser por decisão judicial. Em 2017, deram entrada apenas 26 ações, o ano que ainda contou com mais pedidos por apadrinhamento foram os de 2015 e 2016, quando se registaram 34 entradas de ações deste tipo. Em 2014, foram apenas 13 e, em 2013, só dez.

Mas a verdade é que a Lei n.º 103 de 2009 foi criada também a pensar em situações que já faziam parte de um quotidiano bem português, como a entrega de um filho a alguém da família – um padrinho, uma madrinha, um tio e até vizinhos – para que tivessem uma vida melhor, mas sem que isso implicasse o corte com a família biológica. “O princípio do apadrinhamento civil era proporcionar à criança um ambiente familiar, seguro, afetivo, tranquilo e caloroso, mantendo a ligação à família biológica e a outras figuras de referência da criança”, explica Isabel Pastor, diretora da Unidade da Adoção, Acolhimento Familiar e Apadrinhamento Civil da Santa Casa de Lisboa.

Só que não foi assim que muitos a entenderam. Houve até quem lhe chamasse nado-morto. “Houve campanhas negativas porque se entendeu que esta lei poderia ser um atalho para a adoção, prejudicando ainda mais este processo e não como um regime que poderia dar um projeto de vida a crianças que nunca teriam a hipótese de uma medida de adotabilidade”, admite Isabel Pastor, manifestando ter “pena de que não seja mais divulgada”. Ao mesmo tempo que assume que há um grande desconhecimento sobre a medida e o seu impacto. “A maior parte das pessoas não faz ideia daquilo de que se está a falar”, comenta.

O apadrinhamento fala de uma adoção mais aberta, aquela que procura uma cultura de parentalidade mais plural e a “nossa sociedade não está preparada para ela, para o contacto com a família biológica, com outras figuras de referência para a criança”. Esta lei não só não teve muita divulgação como a que teve tem sido ignorada, “as pessoas que intervêm com as famílias raramente se lembram de trazer este regime à conversa no âmbito da intervenção que estão a fazer com elas, e penso que esta poderia funcionar em muitos casos como uma parentalidade assistida e não de filiação. Os padrinhos civis exercem as responsabilidades em relação à criança, apoiando os pais que não estão capazes para o fazer”, explica ainda a responsável da Santa Casa de Lisboa.

Ao DN houve quem defendesse a lei e o seu objetivo, mas que assumiu nunca a ter aplicado ou proposto. Até porque “não há muitos candidatos”, disseram-nos. Mas houve também quem tivesse manifestado e de forma muito direta que “isso não funciona. As famílias não querem ter chatices com as famílias biológicas e estas também não aceitam”.

Nem só de adoção podem viver as crianças

Confissões e comentários que preocupam quem trabalha no sistema e que luta por mais soluções que não só a institucionalização e a adoção. Porque, como nos diziam, nem só de adoção podem viver estas crianças. Há que mudar a situação. Sofia Marques, advogada e diretora do projeto Amigos Pra Vida, que seleciona famílias disponíveis para outras formas de integração familiar é perentória ao defender: “São os magistrados, os procuradores, as CPCJ e os técnicos, no fundo os decisores no processo de uma criança, que têm de pensar que a medida existe, que faz parte da lei e que é a solução para algumas crianças.”

No projeto que dirige, Sofia Marques diz haver atualmente umas 20 famílias que caminham para um regime de apadrinhamento civil. Algumas já com candidaturas entregues, outras ainda a estabelecer relação de proximidade com a criança. “Temos casos que se concretizaram há dois ou três anos e que têm corrido bem, mas também pode haver outros que não corram tão bem. Não há história no apadrinhamento civil, é um caminho a fazer, mas pode ser uma boa solução para quem não tem outra perspetiva senão a instituição”, salienta. Sublinhando: “Os técnicos têm de ter a coragem de dizer que esta pode ser a única solução para uma criança, que caso contrário poderá ficar esquecida no sistema.”

Sofia Marques deu neste semestre uma aula sobre apadrinhamento civil numa pós-graduação da Universidade Católica sobre Direito das Crianças, “é uma primeira abordagem e começa a ser falado”, admite. “Porque até aqui o que acontecia é que, mesmo quando a medida é proposta e depois se notifica o sistema para se saber se há famílias candidatas, a resposta que aparece muitas vezes é que não há. E o que se faz? Desiste-se. E a criança continua acolhida na instituição ou em família. É preciso admitir a possibilidade de se ir à procura de famílias que possam relacionar-se com estas crianças e que depois o resultado seja mesmo o compromisso pelo apadrinhamento.”

A advogada defende mesmo que “não podemos continuar a ficar à espera de que as famílias caiam do céu. A maioria das situações que chegam ao apadrinhamento civil tem que ver com casos que começaram assim e que depois tiveram este resultado”. O problema, salienta, é que nem sempre as casas de acolhimento têm nas suas equipas técnicas juristas que possam apoiá-las nas propostas de medidas tutelares, porque nem sequer é obrigatório, mas, se fosse, talvez mais crianças em instituições tivessem este projeto de vida e uma integração familiar que não fosse só pela adoção.

Do ponto de vista psicológico,      pode ser importante o contacto com a família biológica

Do ponto de vista psicológico, muitos concordam que a providência definida na Lei n.º 103 de 2009 é a melhor para algumas crianças. “Não é igual para todas, mas para algumas esta é a melhor solução”, comenta a psicóloga Joana Simões Correia, do Lar Maria Droste. “Cada caso é um caso, mas há que pensar no superior interesse da criança, para umas será a adoção, para outras o apadrinhamento civil, que lhe permite manter todos os laços que já tinha.”

A diretora da Unidade de Adoção, Acolhimento Familiar e Apadrinhamento Civil da Santa Casa de Lisboa, Isabel Pastor, sublinha que esta lei foi pensada e aprovada para prevenir a institucionalização e como forma de promover a desinstitucionalização. “É a medida que pode trazer grandes alterações na perspetiva da parentalidade no futuro. Por isso, penso que é preciso que haja de novo uma grande divulgação sobre o que implica.”

A lei dá deveres e direitos aos padrinhos civis, mas também à família biológica. Quem a aceita, não é de facto porque pensa que pode ter acesso a algum apoio monetário, porque essa não é a conceção. “É diferente de um acolhimento familiar, que é temporário, esta solução é um projeto de vida definitivo para uma criança.”

Por desconhecimento, ignorância, crença ou até resistência foi posta de lado, esquecida e ignorada. Como comprovam os dados, ano após ano, são poucas as crianças a quem é proposto este projeto de vida. Enquanto assim for, milhares de crianças não conhecem outra realidade que não a de viver numa instituição. E, nos dias de hoje, “não faz sentido”, dizem-nos. “Nem só de adoção têm de viver estas crianças…”

O que é o apadrinhamento civil?

É uma relação jurídica, tendencialmente de carácter permanente, entre uma criança ou jovem e uma pessoa singular ou uma família que exerça os poderes e deveres próprios dos pais e que com eles estabeleçam vínculos afetivos e que permitam o seu bem-estar e desenvolvimento constituída por homologação ou decisão judicial e sujeita a registo civil.

Quem pode apadrinhar?

Podem ser padrinhos pessoas maiores de 25 anos, previamente habilitadas para o efeito, ficando com o poder de exercer as responsabilidades parentais.

Que direitos têm os pais biológicos?

Os pais têm o direito de conhecer a identidade dos padrinhos, de dispor de uma forma de os contactar, saber o local de residência do filho, ser informados sobre o desenvolvimento e visitar o filho nas condições fixadas no compromisso judicial.

Quem pode propor o apadrinhamento civil?

Pode ser uma iniciativa do Ministério Público, da Comissão de Proteção de Crianças e Jovens, da Segurança Social, dos pais ou de quem represente legalmente a criança. Pode até ser proposto pela própria criança, quando é maior de 12 anos.

* Trabalho inserido numa investigação Especial – Crianças em Perigo, a ser publicado durante o mês de maio no Diário de Notícias

Apadrinhamento civil pode ser uma das soluções para retirar mais crianças das instituições