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19.06.2019 | DN

Adoção: técnicos e magistrados receiam ser atacados pelas suas decisões

É procurador no Tribunal de Cascais há 25 anos. Escolheu sempre a área de família e menores. Hoje ainda se choca com o facto de ser uma das áreas da sociedade em que não se investe muito, quer em meios quer em estratégia. Por isso, defende que ainda há situações em que o Estado deveria intervir, outras que deveriam mudar. Tudo pelo superior interesse da criança.

Gonçalo Mello Breyner defende que a aposta deveria ser na prevenção quer na formação das famílias quer no acompanhamento das grávidas que decidem dar o filho para adoção.

© Paulo Spranger-Global Imagens

Gonçalo Mello Breyner nasceu a 16 de março de 1958. É procurador no Tribunal de Família e Menores de Cascais desde 1993. Nunca deixou a área, apesar dos momentos menos positivos, que também os tem. E confessa: “Às vezes até podemos sentir-nos contrariados a trabalhar nesta área, mas é uma área que compensa muito. Tem muitos desafios e os desafios ajudam-me a continuar. Quando achar que já não os tenho, não estou aqui a fazer nada.”

Aliás, diz mesmo: “Nunca podemos cair na situação de que a experiência vale tudo. A experiência vale o que vale. É preciso que todos nos interroguemos sobre se estamos ou não no melhor caminho, no dia em que chegarmos aqui e acharmos que sabemos tudo, o melhor é irmos embora.”

Nesta conversa com o DN, o procurador de Cascais fala do sistema, da lei, das medidas aplicadas, da realidade que é a falta de meios – tanto a nível de técnicos como de estruturas de apoio – das falhas na articulação entre as entidades que intervêm na área, e que “precisa de ser afinada”. Fala também da falta de visão e de perspetiva de alguns dos que trabalham com crianças e famílias e que, por vezes, até atrasam os processos.

Gonçalo Mello Breyner defende ser importante que nos processos se investigue o passado das famílias, para se poder prever e decidir sobre o futuro com mais segurança, embora diga: “Pasma-me que isto não se faça muito.” Para ele, a verdade é que se tal acontecesse talvez fosse possível não cair na ilusão de que é possível tentar recuperar – ou, se quisermos, dar formação parental – uns pais que já negligenciaram um, dois ou mais filhos.

O mais importante é o superior interesse da criança.

Consentimento prévio para adoção deve cumprir as seis semanas

As crianças que são dadas para adoção à nascença chegam a ficar um ano nas instituições em vez de estarem numa família adotiva, porque o processo complica-se quando a mãe não aparece em tribunal para oficializar o processo ao fim das seis semanas que a lei determina. Acha que este prazo é absolutamente necessário? 
Há mães que muitas vezes desaparecem e ficam com paradeiro desconhecido. Isto levanta algumas dificuldades às autoridades que têm a missão de definir o projeto de vida de uma criança, mas este prazo de seis semanas entra muito na esfera da psicologia. Há quem diga, e eu aceito, que só depois de seis semanas do parto é que a mãe estará em condições de prestar o seu consentimento de forma livre e consciente sobre se quer dar o filho para adoção ou não. Mas também há quem se insurja contra o facto de o nosso legislador ter aumentado este prazo de quatro para as seis semanas.

Mas há mães que após o parto já não querem ver os filhos. Este prazo não é mais difícil para elas? 
Acho que este prazo deve ser cumprido. Estamos a falar de adoção, que é uma matéria muito sensível. Pode haver mães que quando acabam de dar à luz tomem uma posição – quero dar o meu filho para adoção – e duas ou três semanas depois arrependem-se e dizem que já não querem. Por isso acho que este prazo deve ser cumprido.

Os obstáculos que surgem depois e que atrasam os processos? Não é o superior interesse da criança que deve ser tido em conta?
Há uma série de dificuldades e de obstáculos que podem surgir, mas que se ultrapassam. Com este prazo tudo fica mais transparente. Em matéria de adoção a regra tem de ser a transparência total e absoluta relativamente à família biológica. Acho que a família biológica tem de ser informada de tudo o que diz respeito à adoção e tem de ter a oportunidade de contrariar tudo o que entende. Só no final deve haver uma decisão, mas até desta a família pode recorrer. Esta é a minha opinião.

Se a mãe não aparecer em tribunal para formalizar a situação, não há forma de acelerar o processo?
Digo isto muitas vezes às técnicas do serviço social. Uma mãe pode dizer que dá o filho para adoção, que não tem qualquer hipótese de ficar com ele ou que ele não faz parte do seu projeto de vida. Perante isto, assina uma declaração nesse sentido. Não é um consentimento prévio para adoção, mas é um princípio. É um documento que assinou, se não aparecer no tribunal faz-se de imediato a instrução do processo para se saber se a criança está ou não em condições de ser encaminhada para adoção. Se isto vai atrasar um bocadinho o projeto de vida da criança? Vai. É um facto. Mas tem de ser.

Voltamos à mesma questão. Como é que as diligências podem atenuar este prazo que coloca as crianças um ano ou mais nas instituições em vez de estarem numa família adotiva?
Olhe, defendo que todas as entidades devem apoiar o tribunal e as suas diligências para que as mães sejam ouvidas. O legislador até facilitou muito a tarefa, permitindo às mães que se desloquem a qualquer tribunal do país para dar o seu consentimento para a adoção. Não tem de ser no tribunal de residência. Mas eu defendo outra solução.

Qual?
Não é da minha autoria, mas ouvi há uns anos o professor Eduardo Sá falar de um projeto que consistia em que psicólogos fizessem o acompanhamento das grávidas nas maternidades que diziam querer dar o filho para adoção. A ideia era acompanhar esta mãe até ao fim do tempo para perceber e ter certezas do que ela queria fazer. Era um processo esclarecedor. Assim, mal a criança nascesse, poderia entrar no processo para adoção e não havia tempo de espera para ninguém. Para mim, este era o sistema ideal, mas o professor Eduardo Sá também referiu, e com alguma tristeza, que foi apenas um projeto experimental e que não tinha avançado. O que acho uma pena, porque se calhar este processo era a solução ideal para que as crianças tivessem o mínimo de tempo possível à espera para chegarem a uma família adotiva.

Mas se houvesse mais técnicos para dar apoio aos tribunais, para funcionar nas CPCJ e na Segurança Social, os prazos não poderiam melhorar? 
Há de facto carência de técnicos e estes são fundamentais. Se houvesse mais, as avaliações poderiam ser mais rápidas e os projetos de vida das crianças poderiam ser definidos mais rapidamente. Sem dúvida que seria um dos fatores que muito contribuiriam para acelerar os processos. Por outro lado, acho que nós próprios, magistrados do Ministério Público, que acompanhamos as negociações, as diligências, temos de passar uma mensagem muito clara para as comissões de Proteção de Crianças e Jovens (CPCJ), que é: sempre que possa antever-se a possibilidade de uma criança ser encaminhada para adoção, a comissão deve enviar o seu caso rapidamente para o tribunal.

Começa a perder-se tempo logo neste patamar. Na indecisão das decisões ou de não se enviar logo os processos para o tribunal?
Exato. E as comissões não devem perder tempo com avaliações ou situações que podem não ser claras. Nesta situação, deve haver a possibilidade de comunicar de imediato ao Ministério Público, para que este possa intervir. As comissões devem saber dizer: “A minha competência deixa de ser exercida aqui. A criança vai ser enviada para o tribunal, ao qual cabe assumir a definição do seu projeto de vida.” Isto acelera um processo. Se todos estivermos de olhos postos no interesse da criança. Isto é possível. Depois há uma outra coisa, que me causa muita estranheza e que poderia acelerar os processos.

“A realidade é esta: ‘Um pai ou uma mãe que sejam negligentes relativamente a um filho, de tal forma que um tribunal considere que este tem de ser encaminhado para a adoção, se calhar não serão muito diferentes relativamente a um segundo ou terceiro filho”.

O que é?
Os técnicos que trabalham nesta área têm de avaliar com rigor o passado das famílias, da criança, para poderem prever o futuro no mais curto espaço de tempo. É isto que todos nós temos de fazer. Há pessoas que dizem: “Não somos bruxos.” Pois não, mas uma avaliação rigorosa do passado e das famílias permitir-nos-á prever o futuro com alguma segurança.

Como é que isso seria possível?
Já tive casos assim. Há uma criança que entra numa instituição aos 2 anos, durante este tempo viveu com o pai e com a mãe, que eram toxicodependentes e que utilizavam a criança na mendicidade para angariar droga. Estes pais mostraram não ter o mínimo de capacidade para tratar da criança, para lhe proporcionar algo de bom e, muitas vezes, acontece que a proposta que o técnico do serviço social apresenta é de se aguardar mais seis meses para se definir o projeto de vida da criança. Nestas situações eu digo: “Nem pensar.”

Porquê?
É um caso em que já temos dois anos de vida de uma criança com uns pais que já demonstraram que a maltrataram. Depois disto, ainda vamos esperar mais seis meses para que alguém defina o projeto de vida desta criança? Nem pensar, o projeto de vida está definido à partida. É sair daquela família. Mas isto não é costume fazer-se em Portugal…

Por uma questão cultural, pela formação dos próprios técnicos?
Olhe, nem sei dizer porquê. A mim pasma-me esta reação dos técnicos do serviço social. Por isso, garanto-lhe que era muito importante investir no passado das famílias para termos certezas. Eu tive casos em que fui à procura do passado das famílias no estrangeiro, consegui obter outras decisões judiciais relativamente a outros filhos, que me ajudaram a definir aquela família. A realidade é esta: um pai ou uma mãe que sejam negligentes relativamente a um filho, de tal forma que um tribunal considere que este tem de ser encaminhado para adoção, se calhar não serão muito diferentes em relação a um segundo ou terceiro filho. Pode ter havido alguma mudança, às vezes até há, mas não são muitas as vezes. Portanto, temos de valorizar o passado para fazer a tal previsão relativamente ao projeto de vida das crianças e não se perder tempo. Agora, também digo, há cada vez maior receio de prever ou de definir um projeto de vida para uma criança.

Porquê. Tem que ver com a nossa cultura e costumes?
Neste momento, tem que ver com o medo que os técnicos têm de ser atacados e de não estarem salvaguardados.

Há uns que avaliam de uma forma, com maior segurança, e outros de outra, implicando isso um atraso na definição do projeto de vida da criança. Isto acontece, sem dúvida alguma. Mas tem a ver com esses ataques…

Acontece só com os técnicos do serviço social ou também com os magistrados?
Quando digo técnicos falo de tudo, mas não posso generalizar porque não conheço a realidade dos outros tribunais. Conheço a realidade do tribunal onde trabalho. Mas a resposta é sim. Também falo de magistrados. Acho que cada magistrado tem a sua forma de trabalhar a situação das crianças. Há uns que avaliam de uma forma, com maior segurança, outros de outra, implicando isso um atraso na definição do projeto de vida da criança. Isto acontece, sem dúvida alguma. Mas tem que ver com esses ataques…

Refere-se a que ataques? Da comunicação social?
A experiência diz-nos que quando há um caso em que os pais participaram no processo de adoção, que usaram de todos os direitos possíveis e imaginários mas depois são confrontados com uma decisão que não lhes agrada, recorrem à comunicação social. E mal ou bem têm eco. Há muitos que vão para a comunicação social e que dizem cobras e lagartos dos magistrados, dos técnicos, e eu estou convencido de que isso hoje influi na rapidez de uma decisão que tem de ser tomada.

O recorrer à comunicação social não é uma forma de dar transparência aos processos. Ou algo deveria mudar no controlo à atividade dos próprios magistrados?
Bem, nós já somos inspecionados de cinco em cinco anos. Teoricamente, mas somos. De cinco em cinco anos é suposto entrar um inspetor pelo nosso gabinete, pedir-nos todos os processo e fiscalizar o que decidimos. No caso do Ministério Público, fiscalizar o que propomos ao juiz, para que ele decida. Isto é um facto. É um controlo. Agora, que outro tipo de controlo poderia haver? O controlo dos tribunais superiores. Mas o que observamos é que, por exemplo, há um determinado tipo de pais que não recorrem das decisões dos tribunais que encaminham a criança para a adoção nos próprios tribunais mas que não se abstêm de ir para a comunicação social veicular todo o tipo de declarações possíveis e imagináveis.

Refere-se a alguma situação concreta, como o caso da IURD?
Não, porque a história da IURD é muito complicada. É muito difícil saber o que se passou.

Mas o Ministério Público arquivou o processo… 
Exato, mas porque a maior parte dos crimes teria prescrito. São assuntos que mexem muito com as pessoas e que chegam à comunicação social e têm eco. Eu até costumo dizer que não há nada melhor do que uma boa discussão, porque desta é suposto nascer a luz. Só que os tribunais superiores existem para isto e é muito importante que a população o saiba. Estamos no século XXI. Falamos de adoção, que é uma das matérias mais sensíveis da sociedade, e digo isto porque poderia haver uma alteração legislativa que alterasse esta forma de funcionar. Sei que é difícil, mas uma alteração legislativa poderia permitir que as decisões dos tribunais de primeira instância fossem sindicadas logo pelo Tribunal da Relação e pelo Supremo Tribunal de Justiça.

Isso não levaria a mais procedimentos e não atrasaria ainda mais os processos?
Poderia levar, mas também pode não levar. Hoje temos prazos máximos para cumprir. Salvo erro, a Relação tem 30 dias para proferir um acórdão sobre uma decisão de adoção, o Supremo Tribunal de Justiça também tem prazos para cumprir. Se fosse possível funcionar assim, logo com a validação dos tribunais superiores, teríamos um fator de segurança, que é necessário.

Independentemente da comunicação social, a questão dos prazos é das queixas mais recorrentes na definição de um projeto de vida para uma criança…
Costumo dizer para mim próprio que quem trabalha na área e tem de tomar decisões tem de definir o chamado tempo útil da criança. Quando tenho um processo à minha frente, tenho de dizer a mim próprio que a definição deste projeto de vida tem de ser feita em seis meses. E tenho de o fazer neste tempo.

“Quem trabalha nesta área tem de ter a noção em que é possível conjugar duas coisas: o tempo útil da criança com a resposta dos pais.”

Mas não é isso que acontece muitas vezes…
Pois não. Muitas vezes não se respeita o tempo útil para a criança. Muitas vezes porque temos técnicos com visões diferentes do que é importante para a criança, uns não querem apostar na família biológica, outros acham que é por aí que se deve ir. E uma aposta na família biológica pode fazer que o projeto de vida venha a ser definido não em seis meses, mas num ano, dois ou mais. O Estado poderia inverter esta situação.

Como?
Já o disse, mas repito. É difícil recuperar um pai ou uma mãe num período de tempo que seja compatível com o tempo útil da criança. Isto é algo muito pouco realista. Aliás, não tem nada que ver com a realidade. Se tenho um pai ou uma mãe que já deram mostras de negligência relativamente a outros filhos, ainda vou investir mais neles? Ainda vou procurar que alterem a sua conduta relativamente a um terceiro? É que fazer isto é muito complicado, demora muito tempo e é quase uma ilusão…

Está a falar de formação parental… 
Sim. Pode fazer-se formação parental, e com algum sucesso, numa situação em que a criança está com os pais, em que o tribunal tem o processo aberto e o acompanha. Mas nos casos mais graves é impossível. Como é que isto se poderia alterar? Na escola, mal as crianças entrem para a escola e comecem a ser formadas sobre como ser potenciais pais.

Mas voltando ao sistema, a lei portuguesa dá prioridade à intervenção na família biológica. Como é que isto pode ser alterado?
Não tem. A lei é clara. O ideal para uma criança é ser integrada numa família, seja a de origem ou a adotante. Aqui não se distingue. O que há muitas vezes é uma falta de perspetiva e de visão. Quem trabalha nesta área tem de ter noção de que é possível conjugar duas coisas: o tempo útil da criança com a resposta dos pais. E se a lei diz que o interesse da criança é superior, é este que prevalece. Se eu prevejo que vou demorar um ano a instituir qualquer programa de intervenção com uns pais, não tendo a certeza de que chego ao fim desse tempo e que eles estão aptos a receber a criança, então não estou a defender os interesses da criança. Não estou.

O que deve ser feito, então?
Passe-se o processo para julgamento. Transmita-se em julgamento todos os factos que existem para se fazer a discussão do processo, dando aos pais a capacidade de se defenderem e de intervirem no processo. Depois, dar aos tribunais superiores a oportunidade de intervirem também. É por aqui que temos de ir. Pela transparência. Não podemos continuar indefinidamente à espera de recuperar uns pais, porque depois as crianças passam um, dois ou três anos e mais numa instituição. Há situações muitíssimo graves. E não há meios para as investigar. Há processos que podem demorar um ou dois anos por todas estas dificuldades, mas a verdade é que nem tudo é perfeito. E neste aspeto o nosso sistema também não o é.

O arrastar de algumas situações não tem que ver também com o facto de o nosso sistema ser muito fechado? No caso de adoção corta todos os laços com a família de origem…
O legislador também evoluiu neste aspeto e já admite as adoções, que chamamos as adoções abertas, e colocou outras medidas na lei.

Que não são muito utilizadas. Por exemplo, a medida sobre o apadrinhamento civil, que não é proposta pelos técnicos nem aplicada pelos magistrados. É uma questão cultural?
Se calhar é. Mas há ainda outra questão: se em determinado momento um pai ou uma mãe não são capazes de tratar daquela criança, é pelo facto de a integrarmos noutra família que vamos reconhecer a esses pais capacidade para alguma coisa? Por outro lado, não podemos deixar de pensar que também pode ser difícil para a família adotante. O mantermos aqui uma ligação à família biológica tem de ser avaliado caso a caso. Isto é sagrado. E é por aí que temos de ir.

Os tribunais de família e menores deveriam passar a ter corpos de serviço social próprios

É procurador há muitos anos nesta área, o que ainda o choca mais?
Se calhar o facto de ser uma área em que se continua a investir muito pouco. Devia investir-se mais.

Quando fala em investir a que se refere?
Investir em meios humanos, em estruturas de apoio, como na escola. Tudo parte da escola. Todos os que trabalham nesta área são responsáveis pelas crianças. Os magistrados também – embora o nosso papel, muitas vezes, fique confinado aos tribunais onde estamos a resolver os processos que temos. Muito poucas vezes nos sobra tempo para muito mais do que isso – portanto é aconselhável que tenhamos bons contactos com todas as entidades que trabalham no terreno. Mas não temos investido muito nisto. É preciso perceber que qualquer investimento que se faça nesta área será compensado no futuro.

Fala de investimento a nível político, de vontade política?
Acho que sim, a começar logo na própria escola. Em algumas disciplinas sobre educação para a cidadania. Penso que isto é fundamental, é a base de qualquer coisa. Penso que os tribunais têm de ser capazes de melhorar a articulação com as CPCJ, com todos os intervenientes nesta área e que as autarquias também poderão ter um papel muito importante.

Defende o investimento na prevenção, é isso?
Claro. Não é nas situações de emergência que vamos resolver os problemas. Não é possível conciliar o tempo de formação de uns pais com o tempo útil para a definição do projeto de vida da criança. Um deles fica para trás. Não tenham dúvidas sobre isso. A prevenção é fundamental. E penso que o ponto de partida são as escolas.

E os tribunais?
Também temos de dar mais vezes um sinal para fora, até a nível da autarquia. Aqui em Cascais já demos, de que estamos disponíveis para colaborar em todas as ações de formação que as escolas entendam. Porque é assim que se vai educando as crianças. É assim que será possível esperar que daqui a uns anos haja menos violência. É dando mais formação aos futuros pais. É dando-lhes outras possibilidades em termos de formação. Tudo isto tem de ser alterado, enquanto não for…

O que mudaria na forma de funcionamento dos tribunais?
O trabalho do tribunal nesta área não é difícil. Feito o diagnóstico, o tribunal aplica a melhor medida e passa a executá-la. Onde é que está o problema? Na avaliação, na dificuldade de deslindar as situações. Às vezes não se consegue porque faltam meios. Todos nós o sabemos. Por isso há outra situação que acho importantíssima: os tribunais de família e menores deveriam passar a ter corpos de serviço social próprios. Só assim seria possível ajustar situações e ter diagnósticos em tempo recorde. Muitas vezes esperamos por um relatório dois meses, quando não é mais, isso é uma eternidade na vida de uma criança.

Era assim que funcionava antes?
Era. Antigamente o tribunal recebia a notificação de um processo de uma criança e despachava-a para a técnica do serviço social que funcionava no andar de baixo. Ao fim de 15 dias o relatório estava no processo. Hoje é impensável.

Defende um sistema que funcione muito mais no terreno?
Sim, mas isso ainda está por fazer. Às vezes, quando me ponho a sonhar – também sonhamos um bocadinho com isto – sonho que deveria haver uma ligação direta entre as CPCJ e os tribunais. Esta ligação ainda precisa de muitas afinações, porque é preciso fazer a ligação total do processo, de se aproximar procedimentos. Se a comissão pudesse estar instalada no próprio tribunal, em vez de se remeter o processo para o tribunal, pedia-se a presença do juiz na reunião em que a comissão iria discutir um caso que já foi trabalhado pelos técnicos e que só precisa de uma decisão judicial. Assim não se perderia tempo.

Era a forma de atuar no tempo essencial para a criança?
Não tenho dúvidas.

Agora, a nível mais pessoal. Nunca se sente desiludido?
Tenho momentos mais positivos e menos positivos. Quando entro num momento menos positivo penso em tudo, na falta de meios, por exemplo na falta que os psicólogos fazem nestes processos. Penso que estamos a falar da vida de uma criança e que muito deveria ser feito de forma diferente. Deveríamos poder discutir sem complexos, sem aquela ideia que é muito portuguesa de cada um trabalha a sua quinta, quem melhor trabalhar no fim leva uma taça, não pode ser assim. Não há taças.

Sobretudo quando se fala de crianças…
Assim não estamos a ajudar ninguém. Mas se disser isto a alguém haverá logo quem diga que as comissões não se podem confundir com os tribunais. Quero lá saber se a comissão se confunde com o tribunal, o que quero é saber se a comissão fez ou não um bom trabalho relativamente ao caso de uma criança e se há algum mecanismo rápido de intervenção.

Sente-se compensado, ou já se arrependeu de algumas situações?
Trabalho na área desde 1993 e sinto-me compensado, senão não continuava cá. Poder intervir na vida de uma criança e alterar-lhe o destino de uma forma boa é qualquer coisa que nos compensa milhares de vezes. Não há palavras quando se ouve das próprias pessoas: “O senhor interveio neste caso, correu muito bem…” Isto é algo que nos dá motivação.

* Trabalho inserido numa investigação Especial – Crianças em Perigo, que o Diário de Notícias está a publicar.