Category: Adoção

“Fui devolvido. Ninguém me quer…”

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Em 2016, foram devolvidas 19 crianças que estavam em processo de adoção. Em 2017 foram 20 e no ano passado, 14. Ao todo, são 53. Em termos percentuais, o número é reduzido relativamente ao total das que foram adotadas ano a ano. Cerca de 7% ou menos, mas as marcas, essas, ninguém as apaga da memória de quem se sentiu rejeitado.

Sandro e o irmão foram devolvidos duas vezes pelas famílias que os adotaram. Sandro era o mais velho, o mais malcomportado e feioso, segundo as famílias. Pedro e João foram devolvidos uma vez. A família que os adotou considerava que já tinha outros filhos – os seus animais de estimação – e que eles foram perturbar a rotina. Samuel foi vítima de abusos na infância e foi parar a uma instituição. Teve como projeto de vida a adoção. Tornou-se parte de uma família que não tinha filhos, cujo pai também teve uma história de abuso na infância e não conseguiu lidar com a situação. Tempos depois, Samuel voltou à instituição e ainda hoje, quando se refere àquela família, os considera como os seus pais. Nunca mais voltou a ser adotado.

Simão tinha 9 anos quando ele e a irmã mais nova foram devolvidos à guarda do Estado, mas seguiram caminhos diferentes. Ele foi para uma instituição e ela para outra. O tribunal acabou por decidir que um e outro seriam adotados individualmente. Ela já foi adotada, ele está na pré-adolescência e com perfeita consciência de que não será fácil uma segunda oportunidade, uma segunda família, mas continua a perguntar a quem o ouve se já lhe arranjaram uma família. Desabafando tantas vezes: “Fui devolvido, ninguém me quer…”

Estas são histórias que deixam marcas, até nos técnicos que lidam com os processos de adoção ou nos psicólogos que acompanham as crianças ou que avaliam posteriormente os processos que falharam. São histórias que dão que pensar. Por isso, “quando uma adoção é interrompida, é obrigação de todos os técnicos se questionarem. É obrigação porem em causa todo o processo para se perceber o que falhou, porque pode ter havido algum fator de risco, um sinal, que não tenha sido bem avaliado”, a afirmação é de Isabel Pastor, diretora da Unidade de Adoção, Apadrinhamento Civil e Acolhimento Familiar da Santa Casa de Lisboa, numa entrevista ao DN. E reforça: “Por vezes, é mais fácil perceber os sinais depois de a situação ter corrido mal, mas não podemos deixar de o fazer.” Até porque as falhas podem estar na avaliação que se fez da família que, afinal, não correspondia ao perfil que se traçou, pode estar na falha da formação dada aos candidatos, no apoio que lhes é dado, pode estar até na falta de preparação da própria criança para a adoção. “Estamos a lidar com crianças que já se sentem rejeitadas, abandonadas, que trazem, por vezes, uma história muito marcante e que irão sempre testar até ao limite qualquer família. E estas têm de ter as motivações certas e estarem bem preparadas”, argumenta Isabel Pastor.

O futuro é imprevisível, mas as histórias servem de alerta para que outros não tenham de as viver. “As marcas que deixam não são apagadas”, dizem-nos. Por muito que se diga que o número de crianças devolvidas é reduzido comparativamente ao total das que ano a ano integram famílias, nada atenua o sentimento de rejeição, porque é assim que as crianças se sentem. “O número até pode ser reduzido em termos percentuais, mas para as 20 ou 15 crianças que criaram expectativas de ter uma família, que chegaram ao ponto de conhecer os candidatos, de ir viver com eles e depois regressam à instituição, é muito complicado e em alguns casos dramático”, diz a psicóloga Rute Agulhas, que acompanha menores em acolhimento e que fez parte da comissão da Ordem dos Psicólogos que reviu o processo de avaliação dos candidatos à adoção.

Há expressões que se ouvem de algumas famílias e que chocam: “Se isto continua assim vou entregá-lo”; ou que “venderam-me gato por lebre”.-lo

De acordo com os dados oficiais, nos últimos três anos, foram devolvidas 53 crianças às instituições de onde saíram no período de transição ou de pré-adoção. Os relatórios do Conselho Nacional de Adoção e CASA, Caracterização Anual da Situação de Acolhimento, dão conta de que em 2016 regressaram ao sistema por interrupção de adoção 19 crianças; em 2017 regressaram 20 – 13 tinham mais de 7 anos, 11 eram do sexo feminino, nove do masculino e dez eram grupos de irmãos. Em 2018, embora não tenha sido ainda divulgado o relatório do CNA relativo a este ano, o DN apurou que foram devolvidas 14 crianças. Ou melhor, que 14 crianças viram o seu processo de adoção interrompido, é assim que os técnicos e os relatórios oficiais designam a situação.

“Dizer que uma criança foi devolvida choca, mas para elas é isso mesmo. E dizem: ‘Fui devolvido, fui rejeitado, ninguém me quer…'”, explica ao DN a psicóloga. No ano passado, foram seis as situações interrompidas no período de transição, que dura 15 dias a um mês após a criança e a família se conhecerem, e oito já na fase de pré-adoção, nos seis meses que se seguem ao tribunal decretar a adoção.

Mas há algumas que são entregues já depois deste período, pois, segundo os técnicos, esta é a fase do enamoramento entre a criança e a família. Outras regressam mais tarde, chegam a viver anos com as famílias, mas “são devolvidas quando começam a crescer e a dar problemas comportamentais, próprios da idade de quem está na adolescência”, refere ao DN Rute Agulhas. Só que estes dados já não aparecem nas estatísticas oficiais, portanto “os casos são chegam aos técnicos e têm de ser avaliados. Se calhar, o que falta, e quando se trata de uma situação mais avançada, é apenas falta de acompanhamento das famílias, e isso tem de ser repensado”, sublinha a psicóloga.

Chocam algumas expressões que se ouvem da boca de algumas famílias, chocam relatos e desabafos dos jovens que passam por estas experiências. “Já tive de avaliar processos em que as famílias me disseram que os filhos cresceram e não lhes estão gratos – ‘não agradece o que fiz por ele’. Ou que não correspondem às expectativas e, sendo assim, ‘vou entregá-lo’; Ou até ‘venderam-me gato por lebre’, como se os técnicos que estiveram no processo de adoção os tivessem tentado enganar”, conta Rute Agulhas. Acrescentando: “Expressões de quem queria um filho feito à medida, como se houvesse uma receita, e que não o teve. Os filhos biológicos não são feitos à medida e vamos devolvê-los?”

Por isso diz que “a avaliação dos candidatos à adoção é muito importante, mas não só. O acompanhamento durante o período de transição e até pós-adoção também. Muitas famílias alegam que se sentem sozinhas sem saber como reagir perante algumas situações. Se tivessem mais apoio talvez o conseguissem fazer e da forma adequada”.

Sandro carrega o peso de ter sido devolvido duas vezes

O que é para ti uma família? Sandro não teve dúvidas na resposta e desenhou um balão negro a flutuar no ar. A imagem é recordada pela psicóloga que com ele falou depois de ter sido devolvido pela segunda vez por famílias que se candidataram à adoção. Sandro, (nome fictício), tinha 9 anos e um irmão mais novo, de 5. Para ele, a família é igual a nada – ou a rejeição, ou a instabilidade. Sandro foi, supostamente, o culpado pelas situações: “É rebelde e feioso”, alegaram as famílias.

Nas duas vezes, Sandro e o irmão foram viver com as famílias, mas pouco depois estavam a ser entregues à instituição de onde tinham saído. “As famílias alegaram que ele se portava mal. A primeira chegou a verbalizar que não correspondia às expectativas e que era feioso, fiquei chocada quando li isto no processo”, explica Rute Agulhas.

A primeira família propôs-se adotar apenas o mais novo, era mais pequeno, menos rebelde e mais bonito, louro, de olhos azuis. Sandro trazia marcas, memórias, tinha passado por muito, já tinha sentido na pele a rejeição da própria família e não estabelecia vínculos, desconfiava e testava. “Mas quem não o faz? Estas crianças são assim. Trazem bagagem, por vezes muito marcante, as famílias candidatas têm de estar preparadas para isso”, sublinha a psicóloga.

“Por vezes chegamos a situações de devoluções porque as famílias se sentem sozinhas, ficam sozinhas, e não conseguem lidar com as situações.”

Da segunda vez, foram adotados por um jovem casal e nada fazia prever que corresse mal. “Li o processo e não havia indicadores”, confirma Rute Agulhas. A família parecia estar bem preparada, mas Sandro e o irmão foram de novo entregues à instituição no período de pré-adoção. “Não queriam ficar com os dois, só com o mais novo”, explica-nos. Era a segunda situação de interrupção de integração na família.

E a vida de Sandro chegou ao ponto de o próprio irmão “o acusar de não terem uma família”. “Foi horrível quando os ouvi. O mais novo dizia que ‘já tivemos duas famílias e os pais devolveram-nos porque o mano se porta mal, não quero ir para mais nenhuma família com ele’.”

As duas situações marcaram a relação entre Sandro e o irmão. Ele assumia: “Sou o culpado de tudo.” Mas, apesar de ter consciência disso, não conseguia evitá-lo. “Sei que estou a atrapalhar a vida do meu irmão”, chegou a referir. O irmão apenas queria uma família e não a tinha por causa dele.

“O desenho que fez sobre a família revela tudo: a ausência de vínculos. Por isso, testava as famílias que os acolhiam até à exaustão, mas no fundo o que queria era que lhe dissessem e mostrassem: não vais ser rejeitado mais uma vez”, argumenta a psicóloga, que sublinha: “Há famílias que têm as motivações certas, outras não. Mas mesmo as que têm devem ser acompanhadas. Por vezes chegamos a situações de devoluções porque as famílias se sentem sozinhas, ficam sozinhas e não conseguem lidar com as situações.”

Dificuldade em lidar com os desafios

Das 20 crianças devolvidas em 2017, só em duas situações a interrupção “foi motivada por uma resistência recíproca entre crianças e candidatos. Na maior parte das vezes, o fundamento das interrupções é atribuído à dificuldade ou à incapacidade de vinculação por parte dos candidatos”, refere o relatório CASA relativo a esse ano.

“Algumas vezes os candidatos mostraram dificuldade em lidar com os desafios e as exigências do processo, denotando falta de conhecimento ou um desfasamento entre as suas expectativas e o real perfil das crianças. Muito excecionalmente, este facto chegou a gerar castigos desproporcionados ou reações violentas”, lê-se ainda.

Em outros casos, o insucesso ocorreu por “indisponibilidade dos candidatos para o projeto de adoção por estarem demasiado centrados nas suas próprias necessidades, mais do que nas das crianças, ou por estarem noutros projetos incompatíveis, profissionais ou pessoais, com a fase do processo que estavam a vivenciar”.

A psicóloga Rute Agulhas alerta: “As famílias que são avaliadas hoje não são as mesmas que vão receber uma criança daí a três, quatro ou mais anos. Neste período, muita coisa pode mudar na vida das famílias e a avaliação e a seleção dos candidatos deveria ter isso em conta. Nem que fosse necessária uma reavaliação. Por vezes, em determinado momento, não se dá a devida importância aos sinais transmitidos pelos candidatos, mas mais tarde estes podem ser reavaliados e isso poderá evitar algumas das situações de insucesso.”

Pedro e João: devolvidos porque perturbaram a rotina familiar com os animais de estimação

Pedro e João nasceram na mesma família biológica, que os maltratou. Foram retirados e entregues à guarda do Estado. Aguardaram na instituição por uma família que os adotasse. Quando esta apareceu ficaram felizes. Pedro tinha 9 anos, João 6. Meses depois estavam a regressar à instituição. O casal alegou que a presença das crianças perturbou a rotina familiar que já existia anteriormente.

Este é dos casos em que Rute Agulhas diz ter visto sinais de que a situação poderia não correr bem assim que consultou o processo. “Quando me deram o processo para avaliar, depois de as crianças terem sido entregues à instituição, percebi que havia sinais, que deveriam ter sido trabalhados e não foram, que indiciavam que as coisas poderiam não correr muito bem.” E dá um exemplo: “Os candidatos foram convidados a fazer um livro de acolhimento para as crianças. Quando vi o livro, fiquei perplexa. Tinha fotografias do casal, da casa e dos animais de estimação acompanhadas por uma legenda: ‘Este foi o nosso primeiro filho, este o segundo, o terceiro…’ Havia umas seis ou sete fotos de animais de estimação, só depois aparecia um espaço para se colocar as fotos das crianças. Acho que isto era paradigmático de que algo se passava com estes candidatos.”

Ou seja, “um casal que olha para as crianças que vai adotar como o sétimo ou oitavo filho, após seis ou sete animais, não tem as motivações certas. As crianças foram lá para casa e algum tempo depois o processo foi interrompido. Um dos argumentos da senhora era o de que as crianças foram perturbar a vida familiar e a rotina com os outros filhos, que eram os animais. Alguma coisa não correu bem neste processo de avaliação”, critica.

No entanto, reconhece que tem sido feito um esforço para se aperfeiçoar os processos de avaliação dos casais. Porque se existe alguma certeza nos processos de adoção é a de que a avaliação dos candidatos deve ser “exigente, rigorosa e criteriosa. Temos de pensar que estas crianças necessitam de famílias com características muito específicas. São crianças que trazem uma bagagem completamente diferente daquela que traz um filho biológico”.

Ordem dos Psicólogos foi chamado pelo Estado a rever o processo de avaliação dos candidatos à adoção em 2015. Encontrou discrepâncias e incoerências. Fez várias recomendações de alteração que resultaram num manual de regras.

Rute Agulhas integrou a comissão que em 2015 fez a revisão dos protocolos de avaliação dos candidatos à adoção. O pedido foi feito à Ordem pela própria Segurança Social e ao longo do trabalho foram detetadas “discrepâncias e incoerências na forma como os vários centros da Segurança Social faziam esta avaliação. No final, fizemos uma série de recomendações exatamente para uniformizar o processo, porque os candidatos têm de ser avaliados da mesma maneira independentemente de morarem no Porto, em Lisboa ou no Algarve, e isso não estava a acontecer”.

Foi a partir daqui que surgiu um manual de regras de avaliação para os candidatos. Os técnicos não têm dúvidas de que o processo tem de ser exigente e, por isso, muitas vezes é moroso, mas há alguns que admitem que se tal não acontece é também porque “há receio de rejeitar candidatos. Não só porque há muitas crianças à espera de uma família, mas também porque se são rejeitados os casais podem recorrer ao tribunal. Os técnicos têm de ir responder e fundamentar e nem sempre se sentem resguardados pelo próprio sistema”, afirmou ao DN uma técnica que pede anonimato.

A mesma assegura mesmo que a percentagem de casais rejeitados deveria ser maior do que é. “Muitas vezes, não se rejeita por receio ou prurido, mas há casais que não têm as motivações certas”, argumenta. “Nenhum de nós é perfeito, nenhuma criança o é também, sobretudo as que estão em acolhimento, que têm um passado muito marcante. Por isso, quando uma família se disponibiliza para adotar tem de ser especial e estar muito bem preparada para conseguir lidar com todos os desafios que se lhe vão deparar pela frente. E nem sempre há certezas relativamente a isto quando se avalia”, refere. Sublinhando que há que apostar na avaliação e formação dos candidatos e das próprias crianças para a adoção, mas não só. “Devemos estar atentos aos sinais. É preciso questionar porque é que há famílias que são excelentes candidatos e que depois maltratam as crianças e as devolvem. Isto deve fazer que todos nós nos interroguemos”, argumenta.

Tendo em conta as situações por que algumas das crianças passaram e as causas atribuídas às interrupções de adoção, é necessário refletir sobre este assunto em quatro dimensões.”

Em 2017, o Conselho Nacional de Adoção alerta para esta situação, referindo: “Tendo em conta as situações por que algumas das crianças passaram e as causas atribuídas às interrupções de adoção, é necessário refletir sobre este assunto em quatro dimensões.”

Em primeiro lugar, é preciso ter em conta a seleção de candidatos – recomendando “a aplicação dos critérios adotados no manual, a bem da eficácia dos procedimentos para aferir da capacidade dos candidatos para o exercício da parentalidade adotiva; em segundo, diz ser necessário refletir a nível da formação dos candidatos, sustentando que deve ser “assegurado que é prestada aos candidatos a formação disponível no que toca à preparação e integração de crianças com necessidades de apoio particulares (NAP); em terceiro, é preciso fazer tudo a nível da preparação das crianças -, urge assegurar a preparação das crianças para a adoção fazendo-as participar no seu projeto de vida; em quarto lugar urge garantir a disponibilidade de meios para o acompanhamento necessário de cada caso, nomeadamente no que toca a possibilidade de promover períodos preparatórios de transição e de pré-adoção tecnicamente acompanhados.

Pedro e João tiveram uma segunda oportunidade depois de terem sido devolvidos à instituição, já lá vão mais de cinco anos e tudo está a correr bem.

Samuel ainda hoje pergunta se não há uma família para ele

Samuel tem uma história diferente. Foi adotado e devolvido, mas ainda hoje continua a falar daquela família como “os meus pais”. Apesar de ter sido castigado no período em que viveu com eles. Samuel, chamemos-lhe assim, tinha comportamentos sexuais desadequados, que vinham da sua história de abusos na infância. Foi adotado por uma família em que o pai também revelou depois ter tido uma história idêntica.

“Receber esta criança foi um reativar de tudo, de toda a sua história, e não conseguiu lidar com isso”, explicou ao DN a psicóloga que acompanhou este caso. A criança, na altura, porque agora é já adolescente, “não correspondeu às expectativas daqueles pais, que queriam ter em casa um menino bem-comportado e isso não aconteceu”.

Samuel voltou à instituição. Faz terapia. Não voltou a ter outros pais, mas não deixa de ter o sonho de um dia poder estar em família. Rute Agulhas salienta: “Não se pode generalizar as atitudes do candidatos porque muitos têm as motivações certas, mas há outros que estão focados em si, nas suas necessidades e não nas das crianças.” E destes é frequente ouvir: “Não consigo resolver este assunto, se isto não correr bem, vou entregá-lo.” E questiona: “Estamos a falar de um filho. Entregamos os filhos biológicos quando se portam mal ou quando as coisas não correm bem? É por isso que defendo que temos de olhar para trás, para a avaliação dos candidatos, prepará-los, formá-los e apoiá-los.”

Um casal que se candidata à adoção não pode pensar que tem sempre uma forma de resolver o assunto: a devolução, porque as histórias repetem-se.

Simão também ansiava por uma família. Foi levado para uma instituição com uma irmã mais nova, acabaram por ser devolvidos. Simão testava as famílias, quando regressaram à guarda do Estado ficaram em instituições diferentes e o tribunal acabou por decidir que os dois voltariam à lista de adoção individualmente. A irmã já foi adotada. Ele tem 15 anos e perfeita noção de que não será, mas continua a perguntar: “Há alguma família para mim?”

“Já vi situações em que as crianças foram devolvidas e depois foram adotadas e o processo correu bem, mas é claro que os pais que vêm num segundo momento têm um nível de exigência muito maior. O que espera uma criança que já foi devolvida? Que a devolvam a seguir, então pensa: ‘Não me vou ligar, já sei que vou ser rejeitada’, e testa a família até mais não, porque a mensagem que pretende receber é que, afinal, eles aguentam e a amem de forma incondicional.”

Samuel e Simão não são os únicos que após terem sido devolvidos continuam a acreditar e a ter esperança de que um dia terão uma família. Porque, no fundo, foi sempre isso que lhes faltou. Para eles, a realidade é uma só: “Ninguém os quer.” E é-lhes difícil aceitar. É-lhes difícil aceitar que afinal para eles não há uma resposta.

Adoção: técnicos e magistrados receiam ser atacados pelas suas decisões

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É procurador no Tribunal de Cascais há 25 anos. Escolheu sempre a área de família e menores. Hoje ainda se choca com o facto de ser uma das áreas da sociedade em que não se investe muito, quer em meios quer em estratégia. Por isso, defende que ainda há situações em que o Estado deveria intervir, outras que deveriam mudar. Tudo pelo superior interesse da criança.

Gonçalo Mello Breyner defende que a aposta deveria ser na prevenção quer na formação das famílias quer no acompanhamento das grávidas que decidem dar o filho para adoção.

© Paulo Spranger-Global Imagens

Gonçalo Mello Breyner nasceu a 16 de março de 1958. É procurador no Tribunal de Família e Menores de Cascais desde 1993. Nunca deixou a área, apesar dos momentos menos positivos, que também os tem. E confessa: “Às vezes até podemos sentir-nos contrariados a trabalhar nesta área, mas é uma área que compensa muito. Tem muitos desafios e os desafios ajudam-me a continuar. Quando achar que já não os tenho, não estou aqui a fazer nada.”

Aliás, diz mesmo: “Nunca podemos cair na situação de que a experiência vale tudo. A experiência vale o que vale. É preciso que todos nos interroguemos sobre se estamos ou não no melhor caminho, no dia em que chegarmos aqui e acharmos que sabemos tudo, o melhor é irmos embora.”

Nesta conversa com o DN, o procurador de Cascais fala do sistema, da lei, das medidas aplicadas, da realidade que é a falta de meios – tanto a nível de técnicos como de estruturas de apoio – das falhas na articulação entre as entidades que intervêm na área, e que “precisa de ser afinada”. Fala também da falta de visão e de perspetiva de alguns dos que trabalham com crianças e famílias e que, por vezes, até atrasam os processos.

Gonçalo Mello Breyner defende ser importante que nos processos se investigue o passado das famílias, para se poder prever e decidir sobre o futuro com mais segurança, embora diga: “Pasma-me que isto não se faça muito.” Para ele, a verdade é que se tal acontecesse talvez fosse possível não cair na ilusão de que é possível tentar recuperar – ou, se quisermos, dar formação parental – uns pais que já negligenciaram um, dois ou mais filhos.

O mais importante é o superior interesse da criança.

Consentimento prévio para adoção deve cumprir as seis semanas

As crianças que são dadas para adoção à nascença chegam a ficar um ano nas instituições em vez de estarem numa família adotiva, porque o processo complica-se quando a mãe não aparece em tribunal para oficializar o processo ao fim das seis semanas que a lei determina. Acha que este prazo é absolutamente necessário? 
Há mães que muitas vezes desaparecem e ficam com paradeiro desconhecido. Isto levanta algumas dificuldades às autoridades que têm a missão de definir o projeto de vida de uma criança, mas este prazo de seis semanas entra muito na esfera da psicologia. Há quem diga, e eu aceito, que só depois de seis semanas do parto é que a mãe estará em condições de prestar o seu consentimento de forma livre e consciente sobre se quer dar o filho para adoção ou não. Mas também há quem se insurja contra o facto de o nosso legislador ter aumentado este prazo de quatro para as seis semanas.

Mas há mães que após o parto já não querem ver os filhos. Este prazo não é mais difícil para elas? 
Acho que este prazo deve ser cumprido. Estamos a falar de adoção, que é uma matéria muito sensível. Pode haver mães que quando acabam de dar à luz tomem uma posição – quero dar o meu filho para adoção – e duas ou três semanas depois arrependem-se e dizem que já não querem. Por isso acho que este prazo deve ser cumprido.

Os obstáculos que surgem depois e que atrasam os processos? Não é o superior interesse da criança que deve ser tido em conta?
Há uma série de dificuldades e de obstáculos que podem surgir, mas que se ultrapassam. Com este prazo tudo fica mais transparente. Em matéria de adoção a regra tem de ser a transparência total e absoluta relativamente à família biológica. Acho que a família biológica tem de ser informada de tudo o que diz respeito à adoção e tem de ter a oportunidade de contrariar tudo o que entende. Só no final deve haver uma decisão, mas até desta a família pode recorrer. Esta é a minha opinião.

Se a mãe não aparecer em tribunal para formalizar a situação, não há forma de acelerar o processo?
Digo isto muitas vezes às técnicas do serviço social. Uma mãe pode dizer que dá o filho para adoção, que não tem qualquer hipótese de ficar com ele ou que ele não faz parte do seu projeto de vida. Perante isto, assina uma declaração nesse sentido. Não é um consentimento prévio para adoção, mas é um princípio. É um documento que assinou, se não aparecer no tribunal faz-se de imediato a instrução do processo para se saber se a criança está ou não em condições de ser encaminhada para adoção. Se isto vai atrasar um bocadinho o projeto de vida da criança? Vai. É um facto. Mas tem de ser.

Voltamos à mesma questão. Como é que as diligências podem atenuar este prazo que coloca as crianças um ano ou mais nas instituições em vez de estarem numa família adotiva?
Olhe, defendo que todas as entidades devem apoiar o tribunal e as suas diligências para que as mães sejam ouvidas. O legislador até facilitou muito a tarefa, permitindo às mães que se desloquem a qualquer tribunal do país para dar o seu consentimento para a adoção. Não tem de ser no tribunal de residência. Mas eu defendo outra solução.

Qual?
Não é da minha autoria, mas ouvi há uns anos o professor Eduardo Sá falar de um projeto que consistia em que psicólogos fizessem o acompanhamento das grávidas nas maternidades que diziam querer dar o filho para adoção. A ideia era acompanhar esta mãe até ao fim do tempo para perceber e ter certezas do que ela queria fazer. Era um processo esclarecedor. Assim, mal a criança nascesse, poderia entrar no processo para adoção e não havia tempo de espera para ninguém. Para mim, este era o sistema ideal, mas o professor Eduardo Sá também referiu, e com alguma tristeza, que foi apenas um projeto experimental e que não tinha avançado. O que acho uma pena, porque se calhar este processo era a solução ideal para que as crianças tivessem o mínimo de tempo possível à espera para chegarem a uma família adotiva.

Mas se houvesse mais técnicos para dar apoio aos tribunais, para funcionar nas CPCJ e na Segurança Social, os prazos não poderiam melhorar? 
Há de facto carência de técnicos e estes são fundamentais. Se houvesse mais, as avaliações poderiam ser mais rápidas e os projetos de vida das crianças poderiam ser definidos mais rapidamente. Sem dúvida que seria um dos fatores que muito contribuiriam para acelerar os processos. Por outro lado, acho que nós próprios, magistrados do Ministério Público, que acompanhamos as negociações, as diligências, temos de passar uma mensagem muito clara para as comissões de Proteção de Crianças e Jovens (CPCJ), que é: sempre que possa antever-se a possibilidade de uma criança ser encaminhada para adoção, a comissão deve enviar o seu caso rapidamente para o tribunal.

Começa a perder-se tempo logo neste patamar. Na indecisão das decisões ou de não se enviar logo os processos para o tribunal?
Exato. E as comissões não devem perder tempo com avaliações ou situações que podem não ser claras. Nesta situação, deve haver a possibilidade de comunicar de imediato ao Ministério Público, para que este possa intervir. As comissões devem saber dizer: “A minha competência deixa de ser exercida aqui. A criança vai ser enviada para o tribunal, ao qual cabe assumir a definição do seu projeto de vida.” Isto acelera um processo. Se todos estivermos de olhos postos no interesse da criança. Isto é possível. Depois há uma outra coisa, que me causa muita estranheza e que poderia acelerar os processos.

“A realidade é esta: ‘Um pai ou uma mãe que sejam negligentes relativamente a um filho, de tal forma que um tribunal considere que este tem de ser encaminhado para a adoção, se calhar não serão muito diferentes relativamente a um segundo ou terceiro filho”.

O que é?
Os técnicos que trabalham nesta área têm de avaliar com rigor o passado das famílias, da criança, para poderem prever o futuro no mais curto espaço de tempo. É isto que todos nós temos de fazer. Há pessoas que dizem: “Não somos bruxos.” Pois não, mas uma avaliação rigorosa do passado e das famílias permitir-nos-á prever o futuro com alguma segurança.

Como é que isso seria possível?
Já tive casos assim. Há uma criança que entra numa instituição aos 2 anos, durante este tempo viveu com o pai e com a mãe, que eram toxicodependentes e que utilizavam a criança na mendicidade para angariar droga. Estes pais mostraram não ter o mínimo de capacidade para tratar da criança, para lhe proporcionar algo de bom e, muitas vezes, acontece que a proposta que o técnico do serviço social apresenta é de se aguardar mais seis meses para se definir o projeto de vida da criança. Nestas situações eu digo: “Nem pensar.”

Porquê?
É um caso em que já temos dois anos de vida de uma criança com uns pais que já demonstraram que a maltrataram. Depois disto, ainda vamos esperar mais seis meses para que alguém defina o projeto de vida desta criança? Nem pensar, o projeto de vida está definido à partida. É sair daquela família. Mas isto não é costume fazer-se em Portugal…

Por uma questão cultural, pela formação dos próprios técnicos?
Olhe, nem sei dizer porquê. A mim pasma-me esta reação dos técnicos do serviço social. Por isso, garanto-lhe que era muito importante investir no passado das famílias para termos certezas. Eu tive casos em que fui à procura do passado das famílias no estrangeiro, consegui obter outras decisões judiciais relativamente a outros filhos, que me ajudaram a definir aquela família. A realidade é esta: um pai ou uma mãe que sejam negligentes relativamente a um filho, de tal forma que um tribunal considere que este tem de ser encaminhado para adoção, se calhar não serão muito diferentes em relação a um segundo ou terceiro filho. Pode ter havido alguma mudança, às vezes até há, mas não são muitas as vezes. Portanto, temos de valorizar o passado para fazer a tal previsão relativamente ao projeto de vida das crianças e não se perder tempo. Agora, também digo, há cada vez maior receio de prever ou de definir um projeto de vida para uma criança.

Porquê. Tem que ver com a nossa cultura e costumes?
Neste momento, tem que ver com o medo que os técnicos têm de ser atacados e de não estarem salvaguardados.

Há uns que avaliam de uma forma, com maior segurança, e outros de outra, implicando isso um atraso na definição do projeto de vida da criança. Isto acontece, sem dúvida alguma. Mas tem a ver com esses ataques…

Acontece só com os técnicos do serviço social ou também com os magistrados?
Quando digo técnicos falo de tudo, mas não posso generalizar porque não conheço a realidade dos outros tribunais. Conheço a realidade do tribunal onde trabalho. Mas a resposta é sim. Também falo de magistrados. Acho que cada magistrado tem a sua forma de trabalhar a situação das crianças. Há uns que avaliam de uma forma, com maior segurança, outros de outra, implicando isso um atraso na definição do projeto de vida da criança. Isto acontece, sem dúvida alguma. Mas tem que ver com esses ataques…

Refere-se a que ataques? Da comunicação social?
A experiência diz-nos que quando há um caso em que os pais participaram no processo de adoção, que usaram de todos os direitos possíveis e imaginários mas depois são confrontados com uma decisão que não lhes agrada, recorrem à comunicação social. E mal ou bem têm eco. Há muitos que vão para a comunicação social e que dizem cobras e lagartos dos magistrados, dos técnicos, e eu estou convencido de que isso hoje influi na rapidez de uma decisão que tem de ser tomada.

O recorrer à comunicação social não é uma forma de dar transparência aos processos. Ou algo deveria mudar no controlo à atividade dos próprios magistrados?
Bem, nós já somos inspecionados de cinco em cinco anos. Teoricamente, mas somos. De cinco em cinco anos é suposto entrar um inspetor pelo nosso gabinete, pedir-nos todos os processo e fiscalizar o que decidimos. No caso do Ministério Público, fiscalizar o que propomos ao juiz, para que ele decida. Isto é um facto. É um controlo. Agora, que outro tipo de controlo poderia haver? O controlo dos tribunais superiores. Mas o que observamos é que, por exemplo, há um determinado tipo de pais que não recorrem das decisões dos tribunais que encaminham a criança para a adoção nos próprios tribunais mas que não se abstêm de ir para a comunicação social veicular todo o tipo de declarações possíveis e imagináveis.

Refere-se a alguma situação concreta, como o caso da IURD?
Não, porque a história da IURD é muito complicada. É muito difícil saber o que se passou.

Mas o Ministério Público arquivou o processo… 
Exato, mas porque a maior parte dos crimes teria prescrito. São assuntos que mexem muito com as pessoas e que chegam à comunicação social e têm eco. Eu até costumo dizer que não há nada melhor do que uma boa discussão, porque desta é suposto nascer a luz. Só que os tribunais superiores existem para isto e é muito importante que a população o saiba. Estamos no século XXI. Falamos de adoção, que é uma das matérias mais sensíveis da sociedade, e digo isto porque poderia haver uma alteração legislativa que alterasse esta forma de funcionar. Sei que é difícil, mas uma alteração legislativa poderia permitir que as decisões dos tribunais de primeira instância fossem sindicadas logo pelo Tribunal da Relação e pelo Supremo Tribunal de Justiça.

Isso não levaria a mais procedimentos e não atrasaria ainda mais os processos?
Poderia levar, mas também pode não levar. Hoje temos prazos máximos para cumprir. Salvo erro, a Relação tem 30 dias para proferir um acórdão sobre uma decisão de adoção, o Supremo Tribunal de Justiça também tem prazos para cumprir. Se fosse possível funcionar assim, logo com a validação dos tribunais superiores, teríamos um fator de segurança, que é necessário.

Independentemente da comunicação social, a questão dos prazos é das queixas mais recorrentes na definição de um projeto de vida para uma criança…
Costumo dizer para mim próprio que quem trabalha na área e tem de tomar decisões tem de definir o chamado tempo útil da criança. Quando tenho um processo à minha frente, tenho de dizer a mim próprio que a definição deste projeto de vida tem de ser feita em seis meses. E tenho de o fazer neste tempo.

“Quem trabalha nesta área tem de ter a noção em que é possível conjugar duas coisas: o tempo útil da criança com a resposta dos pais.”

Mas não é isso que acontece muitas vezes…
Pois não. Muitas vezes não se respeita o tempo útil para a criança. Muitas vezes porque temos técnicos com visões diferentes do que é importante para a criança, uns não querem apostar na família biológica, outros acham que é por aí que se deve ir. E uma aposta na família biológica pode fazer que o projeto de vida venha a ser definido não em seis meses, mas num ano, dois ou mais. O Estado poderia inverter esta situação.

Como?
Já o disse, mas repito. É difícil recuperar um pai ou uma mãe num período de tempo que seja compatível com o tempo útil da criança. Isto é algo muito pouco realista. Aliás, não tem nada que ver com a realidade. Se tenho um pai ou uma mãe que já deram mostras de negligência relativamente a outros filhos, ainda vou investir mais neles? Ainda vou procurar que alterem a sua conduta relativamente a um terceiro? É que fazer isto é muito complicado, demora muito tempo e é quase uma ilusão…

Está a falar de formação parental… 
Sim. Pode fazer-se formação parental, e com algum sucesso, numa situação em que a criança está com os pais, em que o tribunal tem o processo aberto e o acompanha. Mas nos casos mais graves é impossível. Como é que isto se poderia alterar? Na escola, mal as crianças entrem para a escola e comecem a ser formadas sobre como ser potenciais pais.

Mas voltando ao sistema, a lei portuguesa dá prioridade à intervenção na família biológica. Como é que isto pode ser alterado?
Não tem. A lei é clara. O ideal para uma criança é ser integrada numa família, seja a de origem ou a adotante. Aqui não se distingue. O que há muitas vezes é uma falta de perspetiva e de visão. Quem trabalha nesta área tem de ter noção de que é possível conjugar duas coisas: o tempo útil da criança com a resposta dos pais. E se a lei diz que o interesse da criança é superior, é este que prevalece. Se eu prevejo que vou demorar um ano a instituir qualquer programa de intervenção com uns pais, não tendo a certeza de que chego ao fim desse tempo e que eles estão aptos a receber a criança, então não estou a defender os interesses da criança. Não estou.

O que deve ser feito, então?
Passe-se o processo para julgamento. Transmita-se em julgamento todos os factos que existem para se fazer a discussão do processo, dando aos pais a capacidade de se defenderem e de intervirem no processo. Depois, dar aos tribunais superiores a oportunidade de intervirem também. É por aqui que temos de ir. Pela transparência. Não podemos continuar indefinidamente à espera de recuperar uns pais, porque depois as crianças passam um, dois ou três anos e mais numa instituição. Há situações muitíssimo graves. E não há meios para as investigar. Há processos que podem demorar um ou dois anos por todas estas dificuldades, mas a verdade é que nem tudo é perfeito. E neste aspeto o nosso sistema também não o é.

O arrastar de algumas situações não tem que ver também com o facto de o nosso sistema ser muito fechado? No caso de adoção corta todos os laços com a família de origem…
O legislador também evoluiu neste aspeto e já admite as adoções, que chamamos as adoções abertas, e colocou outras medidas na lei.

Que não são muito utilizadas. Por exemplo, a medida sobre o apadrinhamento civil, que não é proposta pelos técnicos nem aplicada pelos magistrados. É uma questão cultural?
Se calhar é. Mas há ainda outra questão: se em determinado momento um pai ou uma mãe não são capazes de tratar daquela criança, é pelo facto de a integrarmos noutra família que vamos reconhecer a esses pais capacidade para alguma coisa? Por outro lado, não podemos deixar de pensar que também pode ser difícil para a família adotante. O mantermos aqui uma ligação à família biológica tem de ser avaliado caso a caso. Isto é sagrado. E é por aí que temos de ir.

Os tribunais de família e menores deveriam passar a ter corpos de serviço social próprios

É procurador há muitos anos nesta área, o que ainda o choca mais?
Se calhar o facto de ser uma área em que se continua a investir muito pouco. Devia investir-se mais.

Quando fala em investir a que se refere?
Investir em meios humanos, em estruturas de apoio, como na escola. Tudo parte da escola. Todos os que trabalham nesta área são responsáveis pelas crianças. Os magistrados também – embora o nosso papel, muitas vezes, fique confinado aos tribunais onde estamos a resolver os processos que temos. Muito poucas vezes nos sobra tempo para muito mais do que isso – portanto é aconselhável que tenhamos bons contactos com todas as entidades que trabalham no terreno. Mas não temos investido muito nisto. É preciso perceber que qualquer investimento que se faça nesta área será compensado no futuro.

Fala de investimento a nível político, de vontade política?
Acho que sim, a começar logo na própria escola. Em algumas disciplinas sobre educação para a cidadania. Penso que isto é fundamental, é a base de qualquer coisa. Penso que os tribunais têm de ser capazes de melhorar a articulação com as CPCJ, com todos os intervenientes nesta área e que as autarquias também poderão ter um papel muito importante.

Defende o investimento na prevenção, é isso?
Claro. Não é nas situações de emergência que vamos resolver os problemas. Não é possível conciliar o tempo de formação de uns pais com o tempo útil para a definição do projeto de vida da criança. Um deles fica para trás. Não tenham dúvidas sobre isso. A prevenção é fundamental. E penso que o ponto de partida são as escolas.

E os tribunais?
Também temos de dar mais vezes um sinal para fora, até a nível da autarquia. Aqui em Cascais já demos, de que estamos disponíveis para colaborar em todas as ações de formação que as escolas entendam. Porque é assim que se vai educando as crianças. É assim que será possível esperar que daqui a uns anos haja menos violência. É dando mais formação aos futuros pais. É dando-lhes outras possibilidades em termos de formação. Tudo isto tem de ser alterado, enquanto não for…

O que mudaria na forma de funcionamento dos tribunais?
O trabalho do tribunal nesta área não é difícil. Feito o diagnóstico, o tribunal aplica a melhor medida e passa a executá-la. Onde é que está o problema? Na avaliação, na dificuldade de deslindar as situações. Às vezes não se consegue porque faltam meios. Todos nós o sabemos. Por isso há outra situação que acho importantíssima: os tribunais de família e menores deveriam passar a ter corpos de serviço social próprios. Só assim seria possível ajustar situações e ter diagnósticos em tempo recorde. Muitas vezes esperamos por um relatório dois meses, quando não é mais, isso é uma eternidade na vida de uma criança.

Era assim que funcionava antes?
Era. Antigamente o tribunal recebia a notificação de um processo de uma criança e despachava-a para a técnica do serviço social que funcionava no andar de baixo. Ao fim de 15 dias o relatório estava no processo. Hoje é impensável.

Defende um sistema que funcione muito mais no terreno?
Sim, mas isso ainda está por fazer. Às vezes, quando me ponho a sonhar – também sonhamos um bocadinho com isto – sonho que deveria haver uma ligação direta entre as CPCJ e os tribunais. Esta ligação ainda precisa de muitas afinações, porque é preciso fazer a ligação total do processo, de se aproximar procedimentos. Se a comissão pudesse estar instalada no próprio tribunal, em vez de se remeter o processo para o tribunal, pedia-se a presença do juiz na reunião em que a comissão iria discutir um caso que já foi trabalhado pelos técnicos e que só precisa de uma decisão judicial. Assim não se perderia tempo.

Era a forma de atuar no tempo essencial para a criança?
Não tenho dúvidas.

Agora, a nível mais pessoal. Nunca se sente desiludido?
Tenho momentos mais positivos e menos positivos. Quando entro num momento menos positivo penso em tudo, na falta de meios, por exemplo na falta que os psicólogos fazem nestes processos. Penso que estamos a falar da vida de uma criança e que muito deveria ser feito de forma diferente. Deveríamos poder discutir sem complexos, sem aquela ideia que é muito portuguesa de cada um trabalha a sua quinta, quem melhor trabalhar no fim leva uma taça, não pode ser assim. Não há taças.

Sobretudo quando se fala de crianças…
Assim não estamos a ajudar ninguém. Mas se disser isto a alguém haverá logo quem diga que as comissões não se podem confundir com os tribunais. Quero lá saber se a comissão se confunde com o tribunal, o que quero é saber se a comissão fez ou não um bom trabalho relativamente ao caso de uma criança e se há algum mecanismo rápido de intervenção.

Sente-se compensado, ou já se arrependeu de algumas situações?
Trabalho na área desde 1993 e sinto-me compensado, senão não continuava cá. Poder intervir na vida de uma criança e alterar-lhe o destino de uma forma boa é qualquer coisa que nos compensa milhares de vezes. Não há palavras quando se ouve das próprias pessoas: “O senhor interveio neste caso, correu muito bem…” Isto é algo que nos dá motivação.

* Trabalho inserido numa investigação Especial – Crianças em Perigo, que o Diário de Notícias está a publicar.

Crianças dadas à nascença para adoção esperam um ano ou mais a decisão de juízes

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Vicente foi dado para adoção assim que nasceu. Tem sete meses e ainda está na instituição que o acolheu. A mãe não comparece em tribunal para oficializar o ato. E a ida para uma família adotiva cada vez mais atrasada. O seu caso não é único.

Ana Mafalda Inácio (Texto) Diana Quintela (Fotos)

Nasceu nos primeiros dias de novembro de 2018 na maternidade de um hospital da grande Lisboa, mas ainda não se tinha ouvido o choro e já a mãe tinha manifestado a intenção de o dar para adoção. A técnica do serviço social da unidade hospitalar foi informada e passou o caso ao tribunal. Vicente (nome fictício) poucas horas depois de nascer saiu do hospital nos braços de uma técnica para uma instituição de acolhimento. É ali que continua ao fim de sete meses. A mãe não comparece em tribunal para formalizar a sua intenção – de acordo com a lei portuguesa o consentimento prévio tem de ser validado por um juiz seis semanas após o parto, o tempo considerado essencial do ponto de vista psicológico para que a decisão seja consciente.

Segundo apurou o DN, a mãe de Vicente foi notificada pelo tribunal já a meio de janeiro, depois das seis semanas. Não compareceu à primeira chamada, à segunda, à terceira ou à quarta. “O tribunal tem-na notificado mensalmente”, confirmaram-nos. Tudo indica que já não vive na morada que deu na maternidade e que está no tribunal e que já estará a residir noutro país. “O que é comum acontecer, mudam de residência e depois é mais difícil de as contactar”, explicam-nos.

Passaram sete meses, Vicente continua à espera na instituição que o tribunal, neste caso o juiz, decida o seu projeto de vida, mas poderá ali continuar por muito mais tempo, quando “já poderia ter sido acolhido por uma família adotiva”.

Vicente não é caso único. Há outros bebés com o seu percurso que ficam sete, oito, nove, dez meses e até ao ano ou mais à espera da decisão dos tribunais. O número de crianças dadas à nascença para adoção não integra os relatórios oficiais, até porque muitos destes casos acabam por resultar em processos de proteção e de promoção, integrando as estatísticas desta forma. Mas, conforme explica ao DN uma técnica de serviço social que preferiu o anonimato, “o número de mães que dão os filhos para adoção sempre foi muito residual em Portugal. Não acho que tenha vindo a aumentar – ou porque temos melhores pais ou porque ainda há uma grande pressão social para que as mães não o façam. Mas quando há uma mãe que dá o filho para adoção também é raro comparecer em tribunal para oficializar o ato. Esta é a realidade. Normalmente, são mães que vêm de famílias muito desestruturadas e, depois, é muito difícil contactá-las”.

Logo aqui, e com a falta de comparência dos progenitores, começam os atrasos. Por isso, esta técnica defende: “Quando um caso destes chega a uma comissão de proteção ou ao tribunal não pode levar tanto tempo. A situação tem vindo a agravar-se nos últimos anos. Parece que os magistrados se enredam em procedimentos judiciais e não decidem”, argumenta a mesma. “Procuram a mãe, às vezes exaustivamente, abrem processos de promoção e, alguns, mais obstinados, vão até à procura do pai. Tudo isto significa muito tempo para um bebé, para quem o primeiro ano de vida é fundamental.”

O que irá acontecer a Vicente ainda não se sabe. Ou melhor, sabe-se que o seu destino será aquele que a mãe definiu à partida, a adoção, mas não se sabe se o tribunal que tem o seu processo vai continuar a insistir na comparência desta e na sua audição. Não se sabe quais os procedimentos judiciais que irão seguir-se. Se o juiz vai tentar ainda saber se no âmbito da família alargada há alguém que o queira ou não.

Só depois de tudo o que o juiz entender tiver sido feito é que se conhecerá a decisão final. Depois desta é que o processo passa para a equipa de adoção da área e se começa a pesquisar candidatos na lista nacional compatíveis com o perfil de Vicente. De acordo com o relatório de acolhimento da Segurança Social de 2017, há mais de dois mil casais candidatos à adoção, a maioria prefere crianças bebés, dos zero aos três meses e depois até aos 6 anos. A lista de espera para estes é dos quatro aos seis anos.

É urgente mudar esta realidade

Por isto, mas sobretudo pelo superior interesse da criança, é que não se pode continuar a arrastar durante meses uma decisão de adoção, quando há consentimento prévio. “Coloca em causa o desenvolvimento da criança”, dizem-nos. “É urgente mudar, porque enquanto se continuar a pensar que há procedimentos legais que têm de ser levados até à exaustão não se está a acautelar o bem-estar destas crianças”, argumenta ao DN Sofia Pombo, psicóloga e diretora técnica de uma instituição que recebe crianças até aos seis anos, a Mimar.

A diretora de uma outra instituição no norte do país, a Mundos de Vida, a única que tem validação para recrutar e formar famílias de acolhimento, corrobora esta opinião. “Estes prazos deveriam ser encurtados, ou melhor têm de ser encurtados, não só pelas crianças, pelo seu bem-estar, mas também pelas famílias que têm o sonho de poder adotar um bebé.” Celina Cláudio dá um exemplo: “Neste momento temos um bebé que foi dado à nascença para adoção e com o consentimento prévio dos dois progenitores, mas continua connosco e já tem sete meses. Ainda não há uma decisão final por parte do tribunal, nem sabemos quando é que esta será tomada.”

No caso dos bebés que chegam à Mundos de Vida, muitos poderão ter a sorte de serem encaminhados para uma família de acolhimento. “Se tivermos alguma família disponível é logo encaminhado, mas não é fácil porque um bebé até aos três meses requer um perfil muito específico. A família tem de estar em casa, ou pelo menos um dos cuidadores. A lei do acolhimento não prevê licenças para as famílias que têm esta causa.” Celina Cláudio diz compreender que os prazos que estão na lei têm de ser cumpridos, mas, então, que “o sejam de forma mais rápida. No caso que temos agora, há o consentimento dos dois progenitores, mas quando há só o consentimento da mãe os procedimentos ainda se tornam mais morosos. Não pode ser assim, pelas crianças.”

No último ano e meio, a Mimar cinco casos de bebés. “Três saíram aos oito meses e um aos nove. Este último certamente levará mais de um ano”, refere a diretora, que argumenta “nem sequer é dos casos que suscita dúvidas. Há uma decisão clara por parte da mãe.” Por isso, não se percebe a atitude do tribunal. Mais uma vez, dizem-nos, há magistrados que insistem nos procedimentos judiciais até à exaustão. “Há situações que poderiam ser resolvidas em dois ou três meses, como o eram em anos anteriores, mas agora há juízes que pedem relatórios e mais relatórios e avaliações. Assim, não se está a pensar nas crianças.”

Instituição alertou PGR e outras entidades para a situação

Após a decisão do juiz, o primeiro passo é encaminhar o processo para uma equipa de adoção, depois é ficar a aguardar que os técnicos vão conhecer a criança e até esta visita “pode passar um mês ou mais”, garantem-nos. “Há que haver tempo na agenda dos técnicos e até motorista para se poderem deslocar.” Portanto, não é só a insegurança de um magistrado que pode atrasar o projeto de vida de uma criança, a falta de meios também agrava este tempo.

Segundo Sofia Pombo, a instituição que dirige teve situações que, em 2011 e 2012, foram resolvidas em três meses. Só que a situação tem vindo sempre a agravar-se e “é urgente que se faça alguma coisa”, argumenta, defendendo: “Por muito boas condições que uma instituição tenha, por muito bom que seja o seu trabalho e a qualidade que detém nada é comparável ao ambiente de uma família. Um bebé necessita de colo, de estabelecer laços permanentes com quem cuida dele. Se permanecer numa instituição isso não acontece e o seu desenvolvimento pode sofrer danos irreparáveis. ”

Por isso, e em nome da Mimar fez uma exposição sobre esta realidade à Procuradoria-Geral da República (PGR), ao Conselho Superior da Magistratura, à Comissão Nacional de Proteção de Direitos e de Promoção da Criança (CNPDPC) e ao Conselho Nacional da Adoção (CNA – órgão criado em 2016). “É um alerta. Queremos que nos digam o que pode ser feito para que os bebés saiam das instituições mais cedo”. Até agora, receberam respostas do CNA, que informou ter feito uma recomendação no sentido em que os prazos definidos na lei sejam cumpridos, e da PGR, que lhes solicitou mais informação sobre a matéria.

A diretora da Unidade de Adoção, Acolhimento Familiar e Apadrinhamento Civil da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, Isabel Pastor, defendeu numa entrevista ao DN, em maio, que as situações de consentimento prévio deveriam ser uma prioridade, mas, por vezes, há um excessivo investimento numa intervenção que já deu sinal de que será inútil. “Se está prestado o consentimento prévio dos pais, evidentemente que o projeto para esta criança é o da adoção. Foram os pais que o definiram. Isto até deveria contribuir para uma adoção muito mais natural, sem litigiosidade”, afirmou.

Para Isabel Pastor, tendo em conta a lei atual, uma situação de consentimento prévio é típica para que se possa aplicar uma medida de confiança administrativa, não havendo necessidade de se avançar para processos de proteção e promoção e para uma decisão judicial. “Isto só atrasa o projeto de vida de uma criança.” Admite que, na maior parte dos casos, “o tribunal, talvez por uma questão de insegurança, persiste em verificar se este consentimento é prestado inteiramente e com total conhecimento de causa, e, talvez também pelo medo de que haja alguma dificuldade no processo de adoção, em abrir um processo de promoção e proteção.”

Ou seja, numa situação em que a criança poderia ser encaminhada para a adoção aos dois ou três meses poderá ficar à espera de uma família durante sete, oito, nove meses ou mais, por força de um processo judicial, por força de estar a aguardar uma decisão que transite em julgado. Talvez seja necessário que os magistrados tenham mais formação especializada. “Muitas vezes este atraso nos projetos de vida, na aplicação de uma medida de adotabilidade, tem a ver com a insuficiente preparação dos magistrados, sobretudo nas áreas que confluem ao nível da psicologia, do desenvolvimento da criança, da terapia familiar e do sistema familiar”, referiu Isabel Pastor.

A diretora da unidade da Santa Casa diz mesmo que a questão da formação, da insegurança, do receio de uma decisão, leva a que “muitas vezes haja uma aposta excessiva, ou até abusiva, nos direitos dos adultos e não nos direitos das crianças.”

Procurador admite haver mais receio em decidir

O procurador do Ministério Público do Tribunal de Família e Menores de Cascais, Gonçalo Mello Breyner, também defende que as situações como a de Vicente não podem existir. O magistrado sublinha ser a favor do prazo das seis semanas para uma mãe oficializar a sua decisão, que este tem de ser cumprido, que um processo de adoção é muito delicado e que tem de ser transparente, mas há decisões que se têm de tomar.

Para o procurador, há solução ideal: que as mães que manifestam a intenção de dar o filho para adoção sejam acompanhadas durante a gravidez, por psicólogos para que não restassem dúvidas sobre a sua decisão. “Isto seria o ideal, mas aqui tinham de entrar também os técnicos da área da psicologia e da saúde.” O procurador admite também que hoje é cada vez maior o receio de definir o projeto de vida para uma criança. “Hoje, qualquer caso que corra mal chega à comunicação social e isso pesa na decisão dos magistrados e dos técnicos.”

Vicente, Cristina, Jéssica, Marco, Bruno, Antónia e tantos outros que nascem já com um destino traçado, ou porque os pais não os querem ou porque não podem ficar com eles. Sofia Pombo salvaguarda que esta decisão não é fácil. “Já tivemos casos de mães que disseram que davam para adoção e que nas seis semanas seguintes voltaram atrás.” Por isso também defende que estas mães deveriam ser mais acompanhadas do ponto de vista psicológico. “Estas mães também passam por um processo de luto e não têm apoio psicológico. Não é fácil uma decisão destas.”

Quanto às seis semanas após o parto para oficializar a adoção diz.: “Não vejo que haja qualquer problema neste prazo. As seis semanas é o tempo necessário, até está provado em alguns estudos científicos. O problema é que, muitas vezes, as mães são chamadas já depois das seis semanas, já em processo de luto e de separação e nem querem falar do assunto. Estas situações deveriam ser acauteladas. Não sei como, não sou jurista, mas há algo que está a falhar e há algo que tem de mudar.”

A diretora da Mimar diz querer acreditar que a bem dos bebés que são dados para adoção à nascença será possível “encontrar entre todos os intervenientes nos processos uma forma de estes poderem chegar às famílias adotantes mais cedo.”

* Trabalho inserido numa investigação Especial – Crianças em Perigo, que o Diário de Notícias está a publicar.