Crianças dadas à nascença para adoção esperam um ano ou mais a decisão de juízes
Vicente foi dado para adoção assim que nasceu. Tem sete meses e ainda está na instituição que o acolheu. A mãe não comparece em tribunal para oficializar o ato. E a ida para uma família adotiva cada vez mais atrasada. O seu caso não é único.
Ana Mafalda Inácio (Texto) Diana Quintela (Fotos)
Nasceu nos primeiros dias de novembro de 2018 na maternidade de um hospital da grande Lisboa, mas ainda não se tinha ouvido o choro e já a mãe tinha manifestado a intenção de o dar para adoção. A técnica do serviço social da unidade hospitalar foi informada e passou o caso ao tribunal. Vicente (nome fictício) poucas horas depois de nascer saiu do hospital nos braços de uma técnica para uma instituição de acolhimento. É ali que continua ao fim de sete meses. A mãe não comparece em tribunal para formalizar a sua intenção – de acordo com a lei portuguesa o consentimento prévio tem de ser validado por um juiz seis semanas após o parto, o tempo considerado essencial do ponto de vista psicológico para que a decisão seja consciente.
Segundo apurou o DN, a mãe de Vicente foi notificada pelo tribunal já a meio de janeiro, depois das seis semanas. Não compareceu à primeira chamada, à segunda, à terceira ou à quarta. “O tribunal tem-na notificado mensalmente”, confirmaram-nos. Tudo indica que já não vive na morada que deu na maternidade e que está no tribunal e que já estará a residir noutro país. “O que é comum acontecer, mudam de residência e depois é mais difícil de as contactar”, explicam-nos.
Passaram sete meses, Vicente continua à espera na instituição que o tribunal, neste caso o juiz, decida o seu projeto de vida, mas poderá ali continuar por muito mais tempo, quando “já poderia ter sido acolhido por uma família adotiva”.
Vicente não é caso único. Há outros bebés com o seu percurso que ficam sete, oito, nove, dez meses e até ao ano ou mais à espera da decisão dos tribunais. O número de crianças dadas à nascença para adoção não integra os relatórios oficiais, até porque muitos destes casos acabam por resultar em processos de proteção e de promoção, integrando as estatísticas desta forma. Mas, conforme explica ao DN uma técnica de serviço social que preferiu o anonimato, “o número de mães que dão os filhos para adoção sempre foi muito residual em Portugal. Não acho que tenha vindo a aumentar – ou porque temos melhores pais ou porque ainda há uma grande pressão social para que as mães não o façam. Mas quando há uma mãe que dá o filho para adoção também é raro comparecer em tribunal para oficializar o ato. Esta é a realidade. Normalmente, são mães que vêm de famílias muito desestruturadas e, depois, é muito difícil contactá-las”.
Logo aqui, e com a falta de comparência dos progenitores, começam os atrasos. Por isso, esta técnica defende: “Quando um caso destes chega a uma comissão de proteção ou ao tribunal não pode levar tanto tempo. A situação tem vindo a agravar-se nos últimos anos. Parece que os magistrados se enredam em procedimentos judiciais e não decidem”, argumenta a mesma. “Procuram a mãe, às vezes exaustivamente, abrem processos de promoção e, alguns, mais obstinados, vão até à procura do pai. Tudo isto significa muito tempo para um bebé, para quem o primeiro ano de vida é fundamental.”
O que irá acontecer a Vicente ainda não se sabe. Ou melhor, sabe-se que o seu destino será aquele que a mãe definiu à partida, a adoção, mas não se sabe se o tribunal que tem o seu processo vai continuar a insistir na comparência desta e na sua audição. Não se sabe quais os procedimentos judiciais que irão seguir-se. Se o juiz vai tentar ainda saber se no âmbito da família alargada há alguém que o queira ou não.
Só depois de tudo o que o juiz entender tiver sido feito é que se conhecerá a decisão final. Depois desta é que o processo passa para a equipa de adoção da área e se começa a pesquisar candidatos na lista nacional compatíveis com o perfil de Vicente. De acordo com o relatório de acolhimento da Segurança Social de 2017, há mais de dois mil casais candidatos à adoção, a maioria prefere crianças bebés, dos zero aos três meses e depois até aos 6 anos. A lista de espera para estes é dos quatro aos seis anos.
É urgente mudar esta realidade
Por isto, mas sobretudo pelo superior interesse da criança, é que não se pode continuar a arrastar durante meses uma decisão de adoção, quando há consentimento prévio. “Coloca em causa o desenvolvimento da criança”, dizem-nos. “É urgente mudar, porque enquanto se continuar a pensar que há procedimentos legais que têm de ser levados até à exaustão não se está a acautelar o bem-estar destas crianças”, argumenta ao DN Sofia Pombo, psicóloga e diretora técnica de uma instituição que recebe crianças até aos seis anos, a Mimar.
A diretora de uma outra instituição no norte do país, a Mundos de Vida, a única que tem validação para recrutar e formar famílias de acolhimento, corrobora esta opinião. “Estes prazos deveriam ser encurtados, ou melhor têm de ser encurtados, não só pelas crianças, pelo seu bem-estar, mas também pelas famílias que têm o sonho de poder adotar um bebé.” Celina Cláudio dá um exemplo: “Neste momento temos um bebé que foi dado à nascença para adoção e com o consentimento prévio dos dois progenitores, mas continua connosco e já tem sete meses. Ainda não há uma decisão final por parte do tribunal, nem sabemos quando é que esta será tomada.”
No caso dos bebés que chegam à Mundos de Vida, muitos poderão ter a sorte de serem encaminhados para uma família de acolhimento. “Se tivermos alguma família disponível é logo encaminhado, mas não é fácil porque um bebé até aos três meses requer um perfil muito específico. A família tem de estar em casa, ou pelo menos um dos cuidadores. A lei do acolhimento não prevê licenças para as famílias que têm esta causa.” Celina Cláudio diz compreender que os prazos que estão na lei têm de ser cumpridos, mas, então, que “o sejam de forma mais rápida. No caso que temos agora, há o consentimento dos dois progenitores, mas quando há só o consentimento da mãe os procedimentos ainda se tornam mais morosos. Não pode ser assim, pelas crianças.”
No último ano e meio, a Mimar cinco casos de bebés. “Três saíram aos oito meses e um aos nove. Este último certamente levará mais de um ano”, refere a diretora, que argumenta “nem sequer é dos casos que suscita dúvidas. Há uma decisão clara por parte da mãe.” Por isso, não se percebe a atitude do tribunal. Mais uma vez, dizem-nos, há magistrados que insistem nos procedimentos judiciais até à exaustão. “Há situações que poderiam ser resolvidas em dois ou três meses, como o eram em anos anteriores, mas agora há juízes que pedem relatórios e mais relatórios e avaliações. Assim, não se está a pensar nas crianças.”
Instituição alertou PGR e outras entidades para a situação
Após a decisão do juiz, o primeiro passo é encaminhar o processo para uma equipa de adoção, depois é ficar a aguardar que os técnicos vão conhecer a criança e até esta visita “pode passar um mês ou mais”, garantem-nos. “Há que haver tempo na agenda dos técnicos e até motorista para se poderem deslocar.” Portanto, não é só a insegurança de um magistrado que pode atrasar o projeto de vida de uma criança, a falta de meios também agrava este tempo.
Segundo Sofia Pombo, a instituição que dirige teve situações que, em 2011 e 2012, foram resolvidas em três meses. Só que a situação tem vindo sempre a agravar-se e “é urgente que se faça alguma coisa”, argumenta, defendendo: “Por muito boas condições que uma instituição tenha, por muito bom que seja o seu trabalho e a qualidade que detém nada é comparável ao ambiente de uma família. Um bebé necessita de colo, de estabelecer laços permanentes com quem cuida dele. Se permanecer numa instituição isso não acontece e o seu desenvolvimento pode sofrer danos irreparáveis. ”
Por isso, e em nome da Mimar fez uma exposição sobre esta realidade à Procuradoria-Geral da República (PGR), ao Conselho Superior da Magistratura, à Comissão Nacional de Proteção de Direitos e de Promoção da Criança (CNPDPC) e ao Conselho Nacional da Adoção (CNA – órgão criado em 2016). “É um alerta. Queremos que nos digam o que pode ser feito para que os bebés saiam das instituições mais cedo”. Até agora, receberam respostas do CNA, que informou ter feito uma recomendação no sentido em que os prazos definidos na lei sejam cumpridos, e da PGR, que lhes solicitou mais informação sobre a matéria.
A diretora da Unidade de Adoção, Acolhimento Familiar e Apadrinhamento Civil da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, Isabel Pastor, defendeu numa entrevista ao DN, em maio, que as situações de consentimento prévio deveriam ser uma prioridade, mas, por vezes, há um excessivo investimento numa intervenção que já deu sinal de que será inútil. “Se está prestado o consentimento prévio dos pais, evidentemente que o projeto para esta criança é o da adoção. Foram os pais que o definiram. Isto até deveria contribuir para uma adoção muito mais natural, sem litigiosidade”, afirmou.
Para Isabel Pastor, tendo em conta a lei atual, uma situação de consentimento prévio é típica para que se possa aplicar uma medida de confiança administrativa, não havendo necessidade de se avançar para processos de proteção e promoção e para uma decisão judicial. “Isto só atrasa o projeto de vida de uma criança.” Admite que, na maior parte dos casos, “o tribunal, talvez por uma questão de insegurança, persiste em verificar se este consentimento é prestado inteiramente e com total conhecimento de causa, e, talvez também pelo medo de que haja alguma dificuldade no processo de adoção, em abrir um processo de promoção e proteção.”
Ou seja, numa situação em que a criança poderia ser encaminhada para a adoção aos dois ou três meses poderá ficar à espera de uma família durante sete, oito, nove meses ou mais, por força de um processo judicial, por força de estar a aguardar uma decisão que transite em julgado. Talvez seja necessário que os magistrados tenham mais formação especializada. “Muitas vezes este atraso nos projetos de vida, na aplicação de uma medida de adotabilidade, tem a ver com a insuficiente preparação dos magistrados, sobretudo nas áreas que confluem ao nível da psicologia, do desenvolvimento da criança, da terapia familiar e do sistema familiar”, referiu Isabel Pastor.
A diretora da unidade da Santa Casa diz mesmo que a questão da formação, da insegurança, do receio de uma decisão, leva a que “muitas vezes haja uma aposta excessiva, ou até abusiva, nos direitos dos adultos e não nos direitos das crianças.”
Procurador admite haver mais receio em decidir
O procurador do Ministério Público do Tribunal de Família e Menores de Cascais, Gonçalo Mello Breyner, também defende que as situações como a de Vicente não podem existir. O magistrado sublinha ser a favor do prazo das seis semanas para uma mãe oficializar a sua decisão, que este tem de ser cumprido, que um processo de adoção é muito delicado e que tem de ser transparente, mas há decisões que se têm de tomar.
Para o procurador, há solução ideal: que as mães que manifestam a intenção de dar o filho para adoção sejam acompanhadas durante a gravidez, por psicólogos para que não restassem dúvidas sobre a sua decisão. “Isto seria o ideal, mas aqui tinham de entrar também os técnicos da área da psicologia e da saúde.” O procurador admite também que hoje é cada vez maior o receio de definir o projeto de vida para uma criança. “Hoje, qualquer caso que corra mal chega à comunicação social e isso pesa na decisão dos magistrados e dos técnicos.”
Vicente, Cristina, Jéssica, Marco, Bruno, Antónia e tantos outros que nascem já com um destino traçado, ou porque os pais não os querem ou porque não podem ficar com eles. Sofia Pombo salvaguarda que esta decisão não é fácil. “Já tivemos casos de mães que disseram que davam para adoção e que nas seis semanas seguintes voltaram atrás.” Por isso também defende que estas mães deveriam ser mais acompanhadas do ponto de vista psicológico. “Estas mães também passam por um processo de luto e não têm apoio psicológico. Não é fácil uma decisão destas.”
Quanto às seis semanas após o parto para oficializar a adoção diz.: “Não vejo que haja qualquer problema neste prazo. As seis semanas é o tempo necessário, até está provado em alguns estudos científicos. O problema é que, muitas vezes, as mães são chamadas já depois das seis semanas, já em processo de luto e de separação e nem querem falar do assunto. Estas situações deveriam ser acauteladas. Não sei como, não sou jurista, mas há algo que está a falhar e há algo que tem de mudar.”
A diretora da Mimar diz querer acreditar que a bem dos bebés que são dados para adoção à nascença será possível “encontrar entre todos os intervenientes nos processos uma forma de estes poderem chegar às famílias adotantes mais cedo.”
* Trabalho inserido numa investigação Especial – Crianças em Perigo, que o Diário de Notícias está a publicar.