Falta um «sim político» para que crianças em casas de acolhimento possam ter «padrinhos civis»
Jurista Ana Sofia Marques explica que medida de proteção a menores permite manter crianças ligadas à sua família de origem e ganhar suporte emocional de outro agregado familiar
Lisboa, 13 jul 2022 (Ecclesia) – Ana Sofia Marques, jurista com especialização no Direito da Família e Menores, indica a medida do apadrinhamento civil como a via para dar às crianças que crescem em casas de acolhimento “o direito a ter e viver numa família”.
“O que falta é um sim político. De prioridade. Quando isto for prioridade teremos IPSS envolvidas, as casas de acolhimento, e uma sociedade civil disponível com famílias disponíveis a dar este contributo”, explica à Agência ECCLESIA, sobre uma lei “bem feita, mas desconhecida e não posta em prática”.
“A lei quando foi feita previa uma bolsa de padrinhos civis e quando as casas ou os tribunais pedem padrinhos civis, à semelhança da adoção, vai-se a essa bolsa, que neste momento tem poucos candidatos”, lamenta.
O apadrinhamento civil, explica a jurista, “permite duas somas”: “A criança mantém a família, a sua história e origem, e ganha uma nova família onde consegue ser protegida, onde consegue crescer, sentir que pertence e não tem de perder nada para ganhar este direito a ter uma família e viver em família”.
“E estes miúdos precisam de alguém que os acolha, mas também acolha a sua mãe, o pai, os irmãos, os avós. O apadrinhamento civil é claramente a solução, não precisa de ser pela via da medida, mas importa perceber como se operacionaliza – as famílias envolverem-se, uma vez que dá responsabilidade a todos”.
Ana Sofia Marques que, com a sua família, tem a medida de «Regulação de responsabilidades parentais», aplicada a duas pessoas, a Marta e a Maria, que conheceu quando estas residiam numa casa de acolhimento, regista que os técnicos não conhecem a medida de proteção do apadrinhamento civil.
“Quando fomos tratar do assunto, o técnico que nos atendeu e perante a minha sugestão de que o mais adequado era o regime de apadrinhamento civil, ele disse que esse regime não existia. Eu expliquei em que consistia. Do ponto de vista do direito da criança, o regime está muito bem construído, não é aplicado, mas a grande mais-valia é que prevê que se construa uma relação, que pode já pré-existir mas pode ser construída”, reconhece.
Ana Sofia Marques, jovem a licenciar-se em Direito, foi fazer voluntariado a uma casa de acolhimento, Casa da Encosta, onde surgiu o convite para participar em campos de férias organizados por um movimento que mais tarde se veio a chamar Candeia, destinados a crianças residentes em casas de acolhimento.
“Quando acabei o curso, todos os meus colegas e amigos foram para sociedades de advogados e eu fui bater à porta de várias IPSS e tentar perceber o que fazia sentido um jurista fazer, porque não era claro que alguém da área do Direito pudesse trabalhar numa IPSS. E eu acreditava que havia de encontrar uma forma de conjugar o direito com a proteção de menores”, recorda.
A jurista começou por trabalhar numa Comissão de Proteção de Crianças e Jovens, em Lisboa, o que lhe permitiu ter “maior conhecimento” da lei e do funcionamento das casas de acolhimento, reforçando o seu gosto e o entendimento que a sua missão “pessoal e profissional” era trabalhar nesta área.
Em 2015 nasceu o projeto «Amigos p’ra Vida», ligado à associação Candeia, a partir da experiência de relação que Ana Sofia e o seu marido tinham com a Maria e a Marta.
O projeto nasce da experiência de apoio à Marta e à Maria e da consciência que não éramos suficientes, sequer para apoiar os seus irmãos; mas sentíamos que, em vez de estar a levar para casa as necessidades e dizer que não conseguíamos mais, o que fazia mais sentido seria contagiar outros”.
Atualmente a Marta e da Maria vivem com a Ana Sofia, o sue marido e os quatros filhos do casal, com a medida de proteção «Confiança à Pessoas Idónea» que se aplica a pessoas que não são da família: “Somos padrinhos de batismo e agora acrescemos nos direitos e deveres”.
Ana Sofia Marques integra agora o Serviço de Proteção e Cuidado (SPC), da Companhia de Jesus, e o projeto Cuidar, ligado à Universidade Católica Portuguesa, onde a criação da “cultura do cuidado” é o objetivo.
O SPC não foi construído focado nos abusos sexuais mas na proteção contra qualquer forma de mau trato ou abuso, e no objetivo de criar uma cultura de cuidado, numa lógica positiva. Temos sentido que vamos passando do manual feito, em 2018, para o coração das pessoas, sendo necessário um trabalho continuo que não funciona por decreto”, regista.
A conversa com Ana Sofia Marques pode ser acompanhada esta madrugada, pouco depois da meia-noite, no programa Ecclesia na Antena 1, ficando disponível no portal de informação ou em formato podcast.