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26.04.2019 | DN

Famílias de acolhimento vão ter direito a benefícios fiscais, faltas, baixas e abonos

Há muito que se fala de mudanças na Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo sobre famílias de acolhimento. Agora vai haver novas medidas. O projeto de decreto de lei está em consulta pública a partir de hoje e por um mês.

Uma criança tem direito à educação, à saúde e ao bem-estar. Tem direito à proteção, à participação e à não discriminação. Tem direito à sobrevivência, aos cuidados adequados e ao seu desenvolvimento. Uma criança tem direitos. Ponto. Tem direito a que, em todas as situações ou decisões da sua vida, os intervenientes que nelas participem tenham em mente que acima de tudo é “o seu interesse superior” que deve estar sempre presente, como determina a Convenção dos Direitos da Criança, assinada pelas Nações Unidas a 20 de novembro de 1989.

 

Mas a verdade é que nem todas as crianças têm direito a ter direitos. Nem todas têm direito a nascer e a crescer com acesso aos cuidados básicos, nem tão-pouco com o direito a ter colo, mimo e afeto. Ainda é assim 30 anos depois da Convenção da ONU e depois de tantos e tantos especialistas alertarem e confirmarem que o “colo é tão importante quanto o leite” ou, por outras palavras, que “as crianças que recebem colo serão adultos mais confiantes”.

Em Portugal, em 2017, havia 7553 crianças e jovens que estavam à guarda do Estado, por, num momento qualquer da sua vida, ter sido considerado que estavam em perigo. Já foram mais, em 2016 eram 8175. Há quem diga que a redução se deve ao facto de “termos cada vez melhores pais”. Assim se espera. Mas há quem defenda que ainda são demasiados os que esperam numa instituição ou em outra forma de acolhimento o regresso à família de origem ou por outro projeto de vida, como a adoção ou o apadrinhamento civil.

 

Há quem defenda que uma criança ou um jovem, enquanto espera que o sistema funcione e lhe encontre um caminho, um projeto de vida, como define a lei de proteção, deve ter o direito de poder viver, experienciar, o acolhimento numa família que a proteja, que dela cuide, que a acarinhe.

“Um bebé precisa de colo”, “uma criança precisa de mimo”, “uma criança precisa de uma família”, mesmo que não seja a sua. Tantas vezes se ouve frases como estas da boca dos próprios técnicos que trabalham na proteção de menores. Mas o certo é que hoje a principal medida de acolhimento de uma criança ou de um jovem em perigo ainda é o acolhimento residencial – ou seja, a institucionalização, seja bebé, criança até aos 6, 10, 12 ou 16 anos.

 

© Leonel de Castro/Global Imagens

Basta referir que das 7553 crianças e jovens no sistema, 6583 estavam institucionalizadas e só 246 encontravam-se em acolhimento familiar. Ou seja, 246 crianças e jovens acolhidos em 175 famílias, de acordo com os dados do último relatório CASA. Nenhum na área de Lisboa, já que aqui não há uma única família de acolhimento. O mesmo relatório refere que a medida tem sido aplicada mais no Porto, na Madeira, em Vila Real, Braga, Viana do Castelo, Coimbra e Aveiro.

As famílias de acolhimento estão na lei de proteção de menores desde 2008, mas, e como assume fonte do Ministério do Trabalho, da Solidariedade e da Segurança Social, “tem sido uma realidade pouco trabalhada, embora não se esteja a partir de um vazio”. Daí que tivesse sido necessária “uma reflexão aprofundada sobre o que devem ser famílias de acolhimento para se poder reincrementar a medida”, explicou a mesma fonte. Reforçando: “A intenção é que a criança seja acolhida num ambiente familiar, como qualquer outra criança, e numa lógica de apoio e de reforço das suas competências por um período, mas com vista a uma situação mais sólida.”

Foi nesse sentido que o MTSSS criou, em 2017, um grupo de trabalho que integra técnicos da Segurança Social, da Santa Casa de Lisboa e da Casa de Pia de Lisboa, para refletirem e trabalharem uma regulamentação que adaptasse “esta medida a uma nova lógica”, explicou a mesma fonte. O projeto de Lei está pronto e em consulta pública a partir desta sexta-feira por um período de 30 dias.

Acolhimento familiar preferencial até aos 6 anos

O objetivo é tornar a medida mais cativante, torná-la alternativa ao acolhimento residencial e até mesmo prioritária e até preferencial para crianças até aos 6 anos. Por isso, a ideia é poder criar uma bolsa de famílias de acolhimento, que serão avaliadas, selecionadas e recrutadas pelas entidades competentes, em todo o país e de acordo com as necessidades existentes, “e sempre privilegiando a proximidade com a família de origem ou o meio natural de vida da criança ou jovem em causa, se não houver indicação em contrário”.

Mas para colocar em prática a medida, passados estes dez anos, houve mesmo “a necessidade de mudar o paradigma do que é o acolhimento familiar e ao que obrigava, havendo necessidade de alterar alguns dos seus pressupostos”.

Uma família que acolha uma criança com menos de 6 anos receberá 601,35 euros, com mais de 6 receberá 522,91.

Uma das principais mudanças prende-se com o facto de, até agora, quem se candidatasse a família de acolhimento tinha de se inscrever como trabalhador independente, o que exigia também contribuições e um contrato de prestação de serviços. Agora, quem se candidate e for aceite não terá de passar por esta modalidade. Mais: terá acesso a direitos sociais, como faltas, baixas médicas, em caso de doença, e acesso a todas prestações a que uma criança tem direito, como o abono de família.

Neste projeto está ainda consignado que estas famílias terão direito aos benefícios fiscais previstos no Código do Imposto sobre os Rendimentos das Pessoas Singulares e no Estatuto dos Benefícios Fiscais. E porque “a situação acarreta encargos”, o Estado compromete-se também com a atribuição de um apoio pecuniário por criança ou jovem acolhido, correspondente a 1,2 vezes o valor indexante dos apoios sociais.

“Estes são os valores que entendemos necessários para que uma família possa fazer face às despesas quando tem a seu cargo uma criança. A estes acrescerão todas as prestações sociais como abono de família, bonificação por deficiência, subsídio de assistência à terceira pessoa, etc.”, pormenorizou a mesma fonte.

Educação e saúde devem garantir serviços

Este projeto de lei tem como objetivo também agilizar alguma das burocracias e dos entraves detetados em algumas situações de crianças acolhidas que depois não recebiam cuidados de saúde nem de educação básicos de forma imediata. Por isso, a lei define que os serviços do Ministério de Educação devem garantir, em tempo útil, a efetiva inclusão escolar e a oferta formativa adequada a estas crianças e jovens. Em relação aos serviços do Ministério da Saúde, refere mesmo que devem priorizar o acesso destas crianças.

“Com a atual legislação pode haver dificuldade em inscrever uma criança numa escola a meio do ano, na zona de residência da família de acolhimento, mas esta situação vai ficar inscrita na lei. Fizemos um levantamento presencial junto das IPSS que têm acordos de cooperação com a Segurança Social para se perceber quais eram as maiores dificuldades para que pudessem ser corrigidas com esta nova legislação. E estamos já a trabalhar neste sentido com os outros ministérios”, garantiu ao DN fonte do MTSSS.

 

Quem pode candidatar-se

O projeto em discussão estabelece que pode ser candidato a família de acolhimento “pessoa singular, duas pessoas casadas entre si ou que vivam em união de facto, duas ou mais pessoas por laços de parentesco e que vivam em comunhão de mesa e habitação”. Pelo acolhimento familiar ficará responsável um dos elementos da família, mas estas não poderão ter “qualquer relação de parentesco com a criança ou com o jovem”.

No documento, lê-se ainda que cada família poderá acolher até duas crianças ou jovens, mas a título excecional e devidamente justificado poderá acolher mais. Os candidatos deverão ter idade superior a 25 anos e inferior a 65, não serem concorrentes a adoção, terem condições de saúde física e mental e possuir preparação e motivação afetiva para ser família de acolhimento e condições de habitabilidade, etc.

As famílias serão avaliadas e recrutadas pelas entidades competentes, a Segurança Social e a Santa Casa de Lisboa, que terão de gerir as vagas neste tipo de acolhimento a fazer o acompanhamento. Cabe-lhes também divulgar a medida através do desenvolvimento de campanhas para a captação de famílias candidatas.

Na lei estão ainda definidos os direitos e os deveres quer das crianças e dos jovens acolhidos, quer das famílias de acolhimento, como das de origem.

A medida estará em discussão pública até ao final de maio, para que os contributos dados pela sociedade possam ser analisados pelo ministério e contemplados ou não na versão final. Só depois será agendada a discussão e a aprovação em Conselho de Ministros. Em relação à data para a entrada em vigor, “não possível indicar”, refere a mesma fonte. Como não é também possível indicar o número de famílias necessárias para acolher as crianças e jovens a quem a medida deve ser atribuída.

Uma coisa é certa: de acordo com a lei, quando a medida for executada já deve ter por base a “previsibilidade da reintegração da criança ou do jovem na família de origem ou em meio natural de vida”; quando não for possível esta solução, está também previsto “a execução e a preparação da criança ou do jovem para a adoção ou a autonomia de vida”.

O acolhimento familiar está previsto na lei e consiste “na atribuição da confiança da criança ou do jovem a uma pessoa singular ou a uma família, habilitada para o efeito, visando proporcionar à criança ou ao jovem a integração em meio familiar estável que lhe garanta os cuidados adequados às suas necessidades e ao seu bem-estar.”

Ao DN, em entrevista anterior à divulgação deste decreto-lei, a diretora da Unidade de Adoção, Apadrinhamento Civil e Acolhimento Familiar da Santa Casa de Lisboa, Isabel Pastor, defende que a tendência para o futuro é que o acolhimento institucional seja desmantelado. “A meta é que dentro de dez, quinze ou 20 anos toda a criança com necessidade de acolhimento o seja em família.”

Ana Mafalda Inácio