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15.05.2019 | http://www.dn.pt

Psicóloga Rute Agulhas: “Uma família deve ser como um papagaio de papel”

Há famílias perfeitas? Ou quem vive nesta busca vive numa ilusão?

Não há famílias perfeitas. A ideia de família perfeita é utópica e parece-me que nem é isso que se deseja. Se me perguntar se as crianças em acolhimento precisam de famílias perfeitas, eu diria que precisam, mas não as há. Precisam, sim, de famílias com competências muito específicas ou, se quisermos, de famílias especiais. Os desafios que estas crianças vão colocar às famílias de acolhimento são muitos e a vários níveis. São crianças que trazem bagagem, que trazem história, uma narrativa, que têm memórias e, portanto, as famílias têm de saber lidar com tudo isto. Têm mesmo de ser famílias especiais, no sentido em que precisam de ter recursos adicionais…

Que tipo de recursos adicionais?

Quando falo de recursos adicionais, falo de capacidades para saber comunicar com a criança, com o jovem, saber gerir conflitos, saber resolver problemas, serem capazes de conter as suas angústias, a tristeza, a revolta. Falo de saber lidar com as memórias traumáticas que muitas dessas crianças têm, com o saber lidar, muitas vezes, com a angústia em relação ao futuro. Muitas destas crianças trazem o medo da perda, da rejeição, porque é só isso que conhecem, e irão ter muita dificuldade em se ligarem e estabelecerem vínculos afetivos. É preciso não esquecer que muitas destas crianças vêm de um padrão grave, foram vítimas de maus-tratos, abandono, abuso. São crianças com dificuldade em confiar, em dar. Portanto, eu diria que não há famílias perfeitas, mas para estas crianças quase diria que era bom que houvesse.

São crianças especiais que exigem famílias especiais. Mas essas famílias depois de receberem as crianças ficam muitas vezes sozinhas, sem qualquer apoio…

É verdade. Pedimos para estas crianças famílias com características especiais e elas vão necessitar não só de um apoio informal, ou seja, do suporte social que tem que ver com toda a ajuda que possa vir da sua própria família, de amigos, do meio onde a família está inserida, mas também do apoio formal. E este é o que ainda falha muito em Portugal.

O apoio às famílais depois da adoção ainda falha muito em Portugal.

O que chama de apoio formal, o apoio que o Estado deve continuar a dar a estas famílias?

As famílias deveriam ter apoio e acompanhamento após a adoção por parte dos serviços, porque a partir do momento que a adoção está decretada, as famílias ficam sozinhas, sentem-se sozinhas, não têm uma equipa de retaguarda a quem possam recorrer e pedir ajuda quando precisam. Era muito interessante que tivéssemos um modelo, como o que já existe noutros países, em que há um acompanhamento dos serviços de adoção mais prolongado. Não falo do período de pré-adoção, porque não é nos primeiros meses que surgem as dificuldades, é à medida que a criança vai crescendo, quando chega à adolescência. Muitas vezes, nestes casos, há uma série de variáveis que tornam esta idade ainda mais desafiante. E isto faz que muitas famílias se sintam sozinhas e desmotivadas, sem qualquer ajuda das equipas de adoção. Este apoio e suporte tem uma lógica e deveria ser institucional.

Mas este apoio deveria ser dado só às famílias que adotam ou a outras também que entram no sistema para serem padrinhos civis ou até de acolhimento?

Claro, deveria ser dado a todas. Por exemplo, no caso dos padrinhos civis, surge muito até a questão de se é mãe, ou pai, ou se não é. São questões e angústias que surgem numa família, que muitas vezes quem recebe estas crianças não sabe bem como lidar, no caso das famílias amigas. Para mim as famílias amigas são uma resposta fundamental para crianças e jovens que não têm outras respostas, que não têm um projeto de adoção, que “estão em banho-maria”, para usar as palavras de uma criança de 14 anos que acompanho e que não teve um projeto de adoção bem-sucedido e que voltou para a instituição. Esta é a perspetiva de uma criança que sabe que vai continuar no sistema e que diz “estou em stan by“, que diz estou aqui, vou vivendo o meu dia-a-dia, não tenho projeto, vejo os outros a entrar e a sair da instituição, a voltar à família biológica ou a terem uma nova família. Eu não tenho nada, nem uma família amiga.

Neste caso, e para uma criança já com esta idade, a família amiga poderia ajudar?

Uma família amiga seria uma resposta importantíssima para estas crianças e jovens, porque podem colmatar um vazio que estes miúdos sentem. Por exemplo, chega o Natal e eles vão passá-lo nas instituições ou com as famílias dos educadores, da equipa técnica, mas sabem e percebem que não são especiais para aquelas pessoas. Portanto, este conceito de família amiga é de facto muito interessante, mas, lá está, até mesmo estas famílias deveriam ser bem acompanhadas e ajudadas pelos serviços.

O conceito de família amiga não está na lei e nem sempre é visto com bons olhos pelo próprio sistema, por técnicos, magistrados, casas de acolhimento, etc.

É um conceito diferente do de adoção, mas é um conceito e uma perspetiva que tem de ser trabalhada, quer pelo lado da família amiga quer pelo lado da criança, porque não pode ter a expectativa de um dia poder ir viver definitivamente com ela. É preciso definir bem os limites, porque estas crianças são normalmente muito carentes e expectantes e não podem ver uma família amiga como uma solução a longo prazo. Mas é um conceito e uma perspetiva fundamental para muitas destas crianças e jovens acolhidos.

Como é que se explica que o sistema desconfie, como já me foi dito, deste conceito, o que se espera até para o regulamentar?

É verdade. O sistema desconfia até a vários níveis. Desconfia porque acha que, por um lado, há pessoas que o que querem é adotar e usam esta situação como atalho; desconfia, muitas vezes, embora seja uma questão que se põe em termos de avaliação, se aquela família está de facto altruisticamente a tentar ajudar a criança ou se aquela não é uma forma de se ajudar a si própria. Desconfia…

As crianças e os jovens estão à guarda do Estado, mas há necessidade desta desconfiança. A seleção que as instituições fazem não é suficiente?

Eu diria que não há necessidade de desconfiança. Há uma triagem, se essas famílias forem bem avaliadas e acompanhadas não há necessidade de tanta desconfiança. Imagine uma família que está sozinha, deprimida, que os filhos saíram de casa ou que está num processo de separação, mais debilitada e, de repente, alguém lhes diz que até era bom ser família amiga de uma criança ou fazer voluntariado numa casa de acolhimento. Aí, quem faz a avaliação percebe que para esta pessoa o ser família amiga é uma forma de compensar o seu vazio e não a criança, está a pensar que vai buscar afeto e atenção à própria criança e não que lhe vai dar esse afeto. Isto em de ser triado, avaliado, porque uma situação destas vai correr mal. Ou seja, isto faz que as famílias amigas tenham de ser bem avaliadas previamente para se perceber se a pessoa está emocionalmente estável para poder dar à criança o que ela precisa. Penso que com a devida avaliação e acompanhamento podemos encontrar perfis de famílias amigas que podem ajudar e isso ser bom para uma criança.

Já falámos das características de famílias adotivas, das que apadrinham e até deste conceito de família amiga. Mas o que é essencial na base de uma família?

O afeto. Vínculos afetivos seguros. Ou seja, é saber que há uma pessoa que preenche de tal forma a minha necessidade de afeto que me faz sentir segura. Quando dizemos que uma criança tem uma vinculação segura com alguém é exatamente por isso, é porque tem uma base afetiva sólida a ponto de me permitir explorar, autonomizar, proteger e socializar. Eu diria que a cola que une uma família são os afetos.

A cola que une a família é a cola dos afetos.

É isto que define uma família? E os laços biológicos?

É muito giro ouvirmos e pensarmos nas respostas das crianças sobre o que é uma família. Na perspetiva de uma criança, a família ultrapassa, e muito, a questão dos laços biológicos ou consanguíneos. A criança define a família como as pessoas de quem eu gosto e que gostam de mim. Por isso, voltamos à essência, ao afeto, aos vínculos afetivos, que é a tal cola de que falei, independentemente do sexo das pessoas, do número de pessoas, de onde vêm, de onde vivem, etc. Tudo isto é secundário para as crianças. O que interessa é ela sentir que há um vínculo afetivo. Portanto, o que define uma família não são os seus membros, não é se há mãe e pai, se são dois pais ou se são duas mães, se são os avós ou os tios, se vivem aqui ou na China. O que define a família são os afetos.

Isso significa que até podemos ter mais do que uma família?
Bem, não sei. A minha construção de família é só uma, mas pode passar por pessoas muito diversas.

Como diz o ditado, família há só uma?

Há só uma, mas os elementos que a constituem podem ser pessoas que estão próximas fisicamente ou não, podem ser pessoas com laços biológicos ou não, mas eu sinto-as como família.

E quanto ao ditado “a família não se escolhe”, tem mais que ver com os laços biológicos?

O conceito de família vai muito para lá disto…

A construção de uma família é um processo de aprendizagem?

Acho que é um processo de vivência, experiencial, na perspetiva em que se constrói uma relação. Claro que quando experiencio aprendo, mas se não houver essa experiência afetiva não posso aprender. Se não houver a tónica afetiva não consigo aprender a sentir alguém como família. E o conceito-base de família é afetivo e emocional.

Há o medo de constituir uma família ou só o medo das responsabilidades?

Não sei se há o medo de constituir uma família, penso que é mais o medo das responsabilidades que uma família traz. Até mais o medo pela dificuldade de lidar com a responsabilidade afetiva, o medo do abandono e da rejeição.

O que é mais importante que uma família tenha em atenção quando avança para um projeto de adoção, de apadrinhamento ou até de família amiga?

São situações muito diferentes. Numa família amiga tem de saber à partida que o seu papel é o de uma família que tem de deixar partir. Posso ser hoje família amiga de uma criança que daqui a um ano é adotada e tenho de saber lidar com essa situação. Numa família adotiva a expectativa é diferente. E o que se pede, acima de tudo, é a capacidade de amar de forma incondicional. É a necessidade deste vínculo incondicional que não pode depender nunca do comportamento da criança, da capacidade cognitiva, da inteligência, da beleza do que seja. É amar com tudo o que isso implica…

Ter uma família é realmente importante para todos…

É a base de tudo. É o suporte que nos permite ir à aventura e crescer. Quando há uma base segura na família nem há a necessidade de estar com ela ou de falar com ela constantemente. Sabe-se que as pessoas da família estão lá. Há segurança, e esta baixa a ansiedade, permite-nos arriscar a outros níveis, porque sabemos sempre que temos uma base segura. Os técnicos utilizam uma metáfora de que gosto muito para falar da questão da família. Uma família deve ser como um papagaio de papel, ou melhor, como o voar de um papagaio de papel. Se damos muita corda, o papagaio pode voar demasiado e perdemo-lo. Se puxamos muito e não lhe damos suficiente autonomia, cai no chão. No fundo, o exercício da parentalidade tem de ser com este equilíbrio, entre a forma como damos todos os passos e a liberdade que damos ao outro para voar. O exercício funcional da parentalidade deverá ter esta capacidade de ajustamento entre as grandes necessidades e o equilíbrio do sentimento de pertença. É isso, que o papagaio voe sem se perder e sem cair ao chão. Repare, o papagaio está a voar, mas a base está cá em baixo.

Que conselho daria a uma família?

É muito difícil. O que posso dizer é que não tenham medo de amar e de serem firmes.

DN / Ana Mafalda Inácio

* Trabalho inserido numa investigação Especial – Crianças em Perigo, a ser publicado durante o mês de maio no Diário de Notícias