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15.05.2019 | DN

“Se crianças e jovens em acolhimento processassem o Estado…

Sofia Marques é advogada e coordena um projeto de integração familiar. E critica o sistema, a forma como funciona e como trata as próprias crianças e os jovens em acolhimento, a desconfiança que tem em relação à sociedade civil e a falta de vontade política para mudar o que está instalado.

Ana Mafalda Inácio

No dia em que ouviu em tribunal um procurador dizer que o projeto de vida para uma criança de 7 anos era a autonomização, Sofia Marques, coordenadora do projeto Amigos p’ra Vida, sentiu-se indignada. “Isto é inaceitável, eu diria quase crime.” Em seguida, ouviu a diretora da casa de acolhimento em que a criança estava dizer que isso obrigava ao acolhimento em instituição durante muitos anos, até poder integrar uma residência de autonomização. Ou seja, até aos 16 anos, pelo menos. Ouviu-a dizer que o acolhimento institucional deveria ser apenas temporário, que para aquela criança de 7 anos haveria certamente outras soluções. Mas nada.

A advogada, que trabalha há muito nesta área – foi defensora oficiosa de regulações parentais de crianças em casas de acolhimento e membro da Comissão de Proteção de Crianças e Jovens de Lisboa Centro -, diz que já viu e ouviu de tudo. Por isso, critica o sistema, as mentalidades instituídas, a forma como as próprias crianças e os jovens em acolhimento são tratados, a forma como as famílias biológicas e até aquelas que se candidatam a uma adoção, ao acolhimento familiar, ao apadrinhamento civil são esquecidas, ignoradas e até pouco apoiadas. Critica até a forma como o próprio Estado lida com as organizações da sociedade civil que tentam trabalhar e ajudar nesta área. E critica, sobretudo, “a falta de vontade política” para se conseguir mudar o que é preciso.

Sofia Marques, que coordena os Amigos p’ra Vida, um projeto que promove a integração familiar e está associado à instituição particular de solidariedade social (IPSS) Candeia, não tem receio de referir: “Se houvesse crianças e jovens a processar o Estado – por ficarem esquecidos no sistema, em terra de ninguém, envoltas em intervenções que não funcionam ou em procedimentos processuais que não se justificam -, ou até famílias adotivas, que aguardam anos e anos por uma criança que, se calhar, até está em acolhimento, e que se sentem maltratadas pelo próprio sistema, talvez tudo começasse a mexer mais depressa e o sistema mudasse.”

Sublinha: “O consenso político em proteger as crianças é total, mas depois o desleixo também é total e não se faz nada para se mudar este sistema. E estas crianças, que podem chegar à guarda do Estado porque sofreram algum tipo de maus-tratos nas famílias, sofrem também, muitas vezes, maus-tratos de negligência no sistema. Tão-só porque ficam anónimos, ninguém sabe que crianças são estas que ficam à espera de um sistema social e judicial que não respeita prazos, que não respeita projetos de vida possíveis, que não respeita as próprias famílias biológicas.”

Sofia, que foi animadora de colónias de férias de crianças e jovens em acolhimento, cedo começou a perceber que, afinal, havia quem precisasse muito de uma família, nem que fosse de uma família amiga. Daí ter-se formado em Direito, procurado a área da família e de menores e ter começado a orquestrar um projeto, juntamente com outros voluntários, e que recebeu o prémio de empreendedorismo social do BPI Solidário, em 2017.

E hoje não tem dúvidas quando afirma: “O Estado retira porque a criança está em perigo, mas, a partir do momento que esta entra numa instituição, descansa. Quando não deve, não pode ser assim. Toda a criança tem direito a uma solução, a um projeto de vida, a uma família.” Por isso, “quando a criança é retirada à família, ninguém deve descansar enquanto não se souber qual vai ser o seu projeto de vida. É claro que tem de se avaliar a família biológica, que precisa, por vezes, de muito mais apoios do que aqueles que lhe são dados ou até de uma intervenção mais profunda, é claro que tudo tem de ser avaliado, mas esta avaliação requer que existam equipas multidisciplinares que trabalhem em conjunto no terreno, requer decisões que devem ser dadas por estas equipas multidisciplinares. São estas decisões que têm um grande peso na vida das crianças, não podem ser tomadas só porque alguém pensa de determinada forma”.

A proteção de menores não cabe só ao Estado

Para Sofia Marques há uma coisa muito importante para qualquer criança em acolhimento: o tempo. “Há o tempo social, o tempo judicial, mas há também o tempo da criança. Todos têm de ser cumpridos e respeitados, se não forem é o interesse da criança que está a ser posto em causa. E é nesse sentido que se poderia avançar contra o Estado, por não estar a cumprir os tempos, os prazos, que até estão definidos na lei.”

Por isso, defende, “é urgente que se faça alguma coisa quanto a esta realidade. Não há razão nenhuma para que não se faça”, a não ser “falta de vontade política”. Para ela, e muitos como ela que trabalham nesta área, a proteção de menores não cabe só ao Estado. “As famílias, a sociedade civil, a comunidade local podem dar o seu contributo.”

Mas não é esta a perspetiva que o sistema tem. “O que existe ainda hoje é uma falta de abertura de cima para baixo, não há confiança por parte do sistema na sociedade civil e na comunidade. E isso faz que se instale uma certa cultura de abuso de poder e de prepotência técnica dentro do próprio sistema.” Embora diga que “há técnicos e técnicos, magistrados e magistrados, mas a cultura que impera é a de um sistema que vive da desconfiança. Nós próprios, enquanto projeto, sentimos que há dias em que é muito difícil gerir as situações. Isto passa-se connosco, mas também com outras instituições, IPSS, associações, quando o que deveria estar em primeiro lugar era o interesse de todas estas crianças e jovens e o trabalho em conjunto entre todos, sistema e sociedade civil”.

Sofia diz que o desgaste é grande diariamente. “Há dias em que dá vontade de atirar a toalha ao chão”, mas essa sensação de impotência desaparece, quando, um a um, se consegue mudar o padrão. “Tivemos o caso de uma menina de 10 anos, nigeriana, que estava em instituição há muitos anos. O seu projeto de vida não poderia ser o de adoção, porque havia um vínculo forte à mãe. Mas o apadrinhamento civil era uma boa solução. Foi-lhe arranjada uma família amiga, ela começou a sair da instituição aos fins de semana, depois mais tempo, até que foi entregue a essa família com a medida de confiança a pessoa idónea. Só ao fim de algum tempo se propôs o apadrinhamento civil. A mãe biológica aceitou tudo, está tudo regulamentado em tribunal, como se de um acordo parental se tratasse, e hoje esta menina vive num ambiente familiar, feliz e em contacto com a mãe. A perspetiva tem de ser esta”, argumenta.

São estes os casos que dão ânimo. São estes os casos que provam aquilo que já muitos estudos, teses de mestrado e de doutoramento defendem, quando comparam o desenvolvimento de uma criança que esteve em acolhimento numa instituição com outras que estiveram em famílias. “E são diferenças grandes, quer em termos de desenvolvimento afetivo quer, até, intelectual. São estas diferenças que têm de ser entendidas e aceites.”

Para a advogada, “não é aceitável que tribunais e procuradores ainda definam o acolhimento institucional como um projeto de vida para uma criança. É preciso mudar esta cultura, é preciso mudar a mentalidade dos pais biológicos que preferem que os filhos fiquem na instituição, no colégio, como muitos dizem, não lhes permitindo outras oportunidades de vida”.

É preciso que o Estado mude, que o sistema mude, que a cultura mude. “As casas de acolhimento são responsáveis por definirem o projeto de vida de crianças. Portanto, cabe-lhes decidir o futuro, para onde pode ir essa criança, quais são as soluções possíveis. Há algumas situações em que é inexplicável que as crianças fiquem no sistema, que a sua vida se arraste no sistema e nas instituições”, comenta.

E vai mais longe: “É preciso que a Segurança Social se preocupe com o acompanhamento e a fiscalização às casas de acolhimento, que não se fique apenas pela avaliação da entrega de papéis ou não, pelos mapas de frequência, se têm site ou não, mas que procure a discussão dos casos, dos prazos e as oportunidades das crianças e jovens que ali estão.”

Para estas, o mais importante é não ficarem “em banho-maria”, em standby ou não serem um “balão a flutuar.” Expressões usadas por algumas crianças e jovens para definirem as suas vidas. Para estas, a cada dia que passa é maior o receio de poder ser abandonada, rejeitada; a cada dia que passa é maior o hábito de vivência e de sobrevivência numa instituição, que pode ser já difícil de alterar; a cada dia que passa pode ficar mais longe o sonho do afeto, de ter uma família.

* Trabalho inserido numa investigação Especial – Crianças em Perigo, a ser publicado durante o mês de maio no Diário de Notícias