“Fui devolvido. Ninguém me quer…”

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Em 2016, foram devolvidas 19 crianças que estavam em processo de adoção. Em 2017 foram 20 e no ano passado, 14. Ao todo, são 53. Em termos percentuais, o número é reduzido relativamente ao total das que foram adotadas ano a ano. Cerca de 7% ou menos, mas as marcas, essas, ninguém as apaga da memória de quem se sentiu rejeitado.

Sandro e o irmão foram devolvidos duas vezes pelas famílias que os adotaram. Sandro era o mais velho, o mais malcomportado e feioso, segundo as famílias. Pedro e João foram devolvidos uma vez. A família que os adotou considerava que já tinha outros filhos – os seus animais de estimação – e que eles foram perturbar a rotina. Samuel foi vítima de abusos na infância e foi parar a uma instituição. Teve como projeto de vida a adoção. Tornou-se parte de uma família que não tinha filhos, cujo pai também teve uma história de abuso na infância e não conseguiu lidar com a situação. Tempos depois, Samuel voltou à instituição e ainda hoje, quando se refere àquela família, os considera como os seus pais. Nunca mais voltou a ser adotado.

Simão tinha 9 anos quando ele e a irmã mais nova foram devolvidos à guarda do Estado, mas seguiram caminhos diferentes. Ele foi para uma instituição e ela para outra. O tribunal acabou por decidir que um e outro seriam adotados individualmente. Ela já foi adotada, ele está na pré-adolescência e com perfeita consciência de que não será fácil uma segunda oportunidade, uma segunda família, mas continua a perguntar a quem o ouve se já lhe arranjaram uma família. Desabafando tantas vezes: “Fui devolvido, ninguém me quer…”

Estas são histórias que deixam marcas, até nos técnicos que lidam com os processos de adoção ou nos psicólogos que acompanham as crianças ou que avaliam posteriormente os processos que falharam. São histórias que dão que pensar. Por isso, “quando uma adoção é interrompida, é obrigação de todos os técnicos se questionarem. É obrigação porem em causa todo o processo para se perceber o que falhou, porque pode ter havido algum fator de risco, um sinal, que não tenha sido bem avaliado”, a afirmação é de Isabel Pastor, diretora da Unidade de Adoção, Apadrinhamento Civil e Acolhimento Familiar da Santa Casa de Lisboa, numa entrevista ao DN. E reforça: “Por vezes, é mais fácil perceber os sinais depois de a situação ter corrido mal, mas não podemos deixar de o fazer.” Até porque as falhas podem estar na avaliação que se fez da família que, afinal, não correspondia ao perfil que se traçou, pode estar na falha da formação dada aos candidatos, no apoio que lhes é dado, pode estar até na falta de preparação da própria criança para a adoção. “Estamos a lidar com crianças que já se sentem rejeitadas, abandonadas, que trazem, por vezes, uma história muito marcante e que irão sempre testar até ao limite qualquer família. E estas têm de ter as motivações certas e estarem bem preparadas”, argumenta Isabel Pastor.

O futuro é imprevisível, mas as histórias servem de alerta para que outros não tenham de as viver. “As marcas que deixam não são apagadas”, dizem-nos. Por muito que se diga que o número de crianças devolvidas é reduzido comparativamente ao total das que ano a ano integram famílias, nada atenua o sentimento de rejeição, porque é assim que as crianças se sentem. “O número até pode ser reduzido em termos percentuais, mas para as 20 ou 15 crianças que criaram expectativas de ter uma família, que chegaram ao ponto de conhecer os candidatos, de ir viver com eles e depois regressam à instituição, é muito complicado e em alguns casos dramático”, diz a psicóloga Rute Agulhas, que acompanha menores em acolhimento e que fez parte da comissão da Ordem dos Psicólogos que reviu o processo de avaliação dos candidatos à adoção.

Há expressões que se ouvem de algumas famílias e que chocam: “Se isto continua assim vou entregá-lo”; ou que “venderam-me gato por lebre”.-lo

De acordo com os dados oficiais, nos últimos três anos, foram devolvidas 53 crianças às instituições de onde saíram no período de transição ou de pré-adoção. Os relatórios do Conselho Nacional de Adoção e CASA, Caracterização Anual da Situação de Acolhimento, dão conta de que em 2016 regressaram ao sistema por interrupção de adoção 19 crianças; em 2017 regressaram 20 – 13 tinham mais de 7 anos, 11 eram do sexo feminino, nove do masculino e dez eram grupos de irmãos. Em 2018, embora não tenha sido ainda divulgado o relatório do CNA relativo a este ano, o DN apurou que foram devolvidas 14 crianças. Ou melhor, que 14 crianças viram o seu processo de adoção interrompido, é assim que os técnicos e os relatórios oficiais designam a situação.

“Dizer que uma criança foi devolvida choca, mas para elas é isso mesmo. E dizem: ‘Fui devolvido, fui rejeitado, ninguém me quer…'”, explica ao DN a psicóloga. No ano passado, foram seis as situações interrompidas no período de transição, que dura 15 dias a um mês após a criança e a família se conhecerem, e oito já na fase de pré-adoção, nos seis meses que se seguem ao tribunal decretar a adoção.

Mas há algumas que são entregues já depois deste período, pois, segundo os técnicos, esta é a fase do enamoramento entre a criança e a família. Outras regressam mais tarde, chegam a viver anos com as famílias, mas “são devolvidas quando começam a crescer e a dar problemas comportamentais, próprios da idade de quem está na adolescência”, refere ao DN Rute Agulhas. Só que estes dados já não aparecem nas estatísticas oficiais, portanto “os casos são chegam aos técnicos e têm de ser avaliados. Se calhar, o que falta, e quando se trata de uma situação mais avançada, é apenas falta de acompanhamento das famílias, e isso tem de ser repensado”, sublinha a psicóloga.

Chocam algumas expressões que se ouvem da boca de algumas famílias, chocam relatos e desabafos dos jovens que passam por estas experiências. “Já tive de avaliar processos em que as famílias me disseram que os filhos cresceram e não lhes estão gratos – ‘não agradece o que fiz por ele’. Ou que não correspondem às expectativas e, sendo assim, ‘vou entregá-lo’; Ou até ‘venderam-me gato por lebre’, como se os técnicos que estiveram no processo de adoção os tivessem tentado enganar”, conta Rute Agulhas. Acrescentando: “Expressões de quem queria um filho feito à medida, como se houvesse uma receita, e que não o teve. Os filhos biológicos não são feitos à medida e vamos devolvê-los?”

Por isso diz que “a avaliação dos candidatos à adoção é muito importante, mas não só. O acompanhamento durante o período de transição e até pós-adoção também. Muitas famílias alegam que se sentem sozinhas sem saber como reagir perante algumas situações. Se tivessem mais apoio talvez o conseguissem fazer e da forma adequada”.

Sandro carrega o peso de ter sido devolvido duas vezes

O que é para ti uma família? Sandro não teve dúvidas na resposta e desenhou um balão negro a flutuar no ar. A imagem é recordada pela psicóloga que com ele falou depois de ter sido devolvido pela segunda vez por famílias que se candidataram à adoção. Sandro, (nome fictício), tinha 9 anos e um irmão mais novo, de 5. Para ele, a família é igual a nada – ou a rejeição, ou a instabilidade. Sandro foi, supostamente, o culpado pelas situações: “É rebelde e feioso”, alegaram as famílias.

Nas duas vezes, Sandro e o irmão foram viver com as famílias, mas pouco depois estavam a ser entregues à instituição de onde tinham saído. “As famílias alegaram que ele se portava mal. A primeira chegou a verbalizar que não correspondia às expectativas e que era feioso, fiquei chocada quando li isto no processo”, explica Rute Agulhas.

A primeira família propôs-se adotar apenas o mais novo, era mais pequeno, menos rebelde e mais bonito, louro, de olhos azuis. Sandro trazia marcas, memórias, tinha passado por muito, já tinha sentido na pele a rejeição da própria família e não estabelecia vínculos, desconfiava e testava. “Mas quem não o faz? Estas crianças são assim. Trazem bagagem, por vezes muito marcante, as famílias candidatas têm de estar preparadas para isso”, sublinha a psicóloga.

“Por vezes chegamos a situações de devoluções porque as famílias se sentem sozinhas, ficam sozinhas, e não conseguem lidar com as situações.”

Da segunda vez, foram adotados por um jovem casal e nada fazia prever que corresse mal. “Li o processo e não havia indicadores”, confirma Rute Agulhas. A família parecia estar bem preparada, mas Sandro e o irmão foram de novo entregues à instituição no período de pré-adoção. “Não queriam ficar com os dois, só com o mais novo”, explica-nos. Era a segunda situação de interrupção de integração na família.

E a vida de Sandro chegou ao ponto de o próprio irmão “o acusar de não terem uma família”. “Foi horrível quando os ouvi. O mais novo dizia que ‘já tivemos duas famílias e os pais devolveram-nos porque o mano se porta mal, não quero ir para mais nenhuma família com ele’.”

As duas situações marcaram a relação entre Sandro e o irmão. Ele assumia: “Sou o culpado de tudo.” Mas, apesar de ter consciência disso, não conseguia evitá-lo. “Sei que estou a atrapalhar a vida do meu irmão”, chegou a referir. O irmão apenas queria uma família e não a tinha por causa dele.

“O desenho que fez sobre a família revela tudo: a ausência de vínculos. Por isso, testava as famílias que os acolhiam até à exaustão, mas no fundo o que queria era que lhe dissessem e mostrassem: não vais ser rejeitado mais uma vez”, argumenta a psicóloga, que sublinha: “Há famílias que têm as motivações certas, outras não. Mas mesmo as que têm devem ser acompanhadas. Por vezes chegamos a situações de devoluções porque as famílias se sentem sozinhas, ficam sozinhas e não conseguem lidar com as situações.”

Dificuldade em lidar com os desafios

Das 20 crianças devolvidas em 2017, só em duas situações a interrupção “foi motivada por uma resistência recíproca entre crianças e candidatos. Na maior parte das vezes, o fundamento das interrupções é atribuído à dificuldade ou à incapacidade de vinculação por parte dos candidatos”, refere o relatório CASA relativo a esse ano.

“Algumas vezes os candidatos mostraram dificuldade em lidar com os desafios e as exigências do processo, denotando falta de conhecimento ou um desfasamento entre as suas expectativas e o real perfil das crianças. Muito excecionalmente, este facto chegou a gerar castigos desproporcionados ou reações violentas”, lê-se ainda.

Em outros casos, o insucesso ocorreu por “indisponibilidade dos candidatos para o projeto de adoção por estarem demasiado centrados nas suas próprias necessidades, mais do que nas das crianças, ou por estarem noutros projetos incompatíveis, profissionais ou pessoais, com a fase do processo que estavam a vivenciar”.

A psicóloga Rute Agulhas alerta: “As famílias que são avaliadas hoje não são as mesmas que vão receber uma criança daí a três, quatro ou mais anos. Neste período, muita coisa pode mudar na vida das famílias e a avaliação e a seleção dos candidatos deveria ter isso em conta. Nem que fosse necessária uma reavaliação. Por vezes, em determinado momento, não se dá a devida importância aos sinais transmitidos pelos candidatos, mas mais tarde estes podem ser reavaliados e isso poderá evitar algumas das situações de insucesso.”

Pedro e João: devolvidos porque perturbaram a rotina familiar com os animais de estimação

Pedro e João nasceram na mesma família biológica, que os maltratou. Foram retirados e entregues à guarda do Estado. Aguardaram na instituição por uma família que os adotasse. Quando esta apareceu ficaram felizes. Pedro tinha 9 anos, João 6. Meses depois estavam a regressar à instituição. O casal alegou que a presença das crianças perturbou a rotina familiar que já existia anteriormente.

Este é dos casos em que Rute Agulhas diz ter visto sinais de que a situação poderia não correr bem assim que consultou o processo. “Quando me deram o processo para avaliar, depois de as crianças terem sido entregues à instituição, percebi que havia sinais, que deveriam ter sido trabalhados e não foram, que indiciavam que as coisas poderiam não correr muito bem.” E dá um exemplo: “Os candidatos foram convidados a fazer um livro de acolhimento para as crianças. Quando vi o livro, fiquei perplexa. Tinha fotografias do casal, da casa e dos animais de estimação acompanhadas por uma legenda: ‘Este foi o nosso primeiro filho, este o segundo, o terceiro…’ Havia umas seis ou sete fotos de animais de estimação, só depois aparecia um espaço para se colocar as fotos das crianças. Acho que isto era paradigmático de que algo se passava com estes candidatos.”

Ou seja, “um casal que olha para as crianças que vai adotar como o sétimo ou oitavo filho, após seis ou sete animais, não tem as motivações certas. As crianças foram lá para casa e algum tempo depois o processo foi interrompido. Um dos argumentos da senhora era o de que as crianças foram perturbar a vida familiar e a rotina com os outros filhos, que eram os animais. Alguma coisa não correu bem neste processo de avaliação”, critica.

No entanto, reconhece que tem sido feito um esforço para se aperfeiçoar os processos de avaliação dos casais. Porque se existe alguma certeza nos processos de adoção é a de que a avaliação dos candidatos deve ser “exigente, rigorosa e criteriosa. Temos de pensar que estas crianças necessitam de famílias com características muito específicas. São crianças que trazem uma bagagem completamente diferente daquela que traz um filho biológico”.

Ordem dos Psicólogos foi chamado pelo Estado a rever o processo de avaliação dos candidatos à adoção em 2015. Encontrou discrepâncias e incoerências. Fez várias recomendações de alteração que resultaram num manual de regras.

Rute Agulhas integrou a comissão que em 2015 fez a revisão dos protocolos de avaliação dos candidatos à adoção. O pedido foi feito à Ordem pela própria Segurança Social e ao longo do trabalho foram detetadas “discrepâncias e incoerências na forma como os vários centros da Segurança Social faziam esta avaliação. No final, fizemos uma série de recomendações exatamente para uniformizar o processo, porque os candidatos têm de ser avaliados da mesma maneira independentemente de morarem no Porto, em Lisboa ou no Algarve, e isso não estava a acontecer”.

Foi a partir daqui que surgiu um manual de regras de avaliação para os candidatos. Os técnicos não têm dúvidas de que o processo tem de ser exigente e, por isso, muitas vezes é moroso, mas há alguns que admitem que se tal não acontece é também porque “há receio de rejeitar candidatos. Não só porque há muitas crianças à espera de uma família, mas também porque se são rejeitados os casais podem recorrer ao tribunal. Os técnicos têm de ir responder e fundamentar e nem sempre se sentem resguardados pelo próprio sistema”, afirmou ao DN uma técnica que pede anonimato.

A mesma assegura mesmo que a percentagem de casais rejeitados deveria ser maior do que é. “Muitas vezes, não se rejeita por receio ou prurido, mas há casais que não têm as motivações certas”, argumenta. “Nenhum de nós é perfeito, nenhuma criança o é também, sobretudo as que estão em acolhimento, que têm um passado muito marcante. Por isso, quando uma família se disponibiliza para adotar tem de ser especial e estar muito bem preparada para conseguir lidar com todos os desafios que se lhe vão deparar pela frente. E nem sempre há certezas relativamente a isto quando se avalia”, refere. Sublinhando que há que apostar na avaliação e formação dos candidatos e das próprias crianças para a adoção, mas não só. “Devemos estar atentos aos sinais. É preciso questionar porque é que há famílias que são excelentes candidatos e que depois maltratam as crianças e as devolvem. Isto deve fazer que todos nós nos interroguemos”, argumenta.

Tendo em conta as situações por que algumas das crianças passaram e as causas atribuídas às interrupções de adoção, é necessário refletir sobre este assunto em quatro dimensões.”

Em 2017, o Conselho Nacional de Adoção alerta para esta situação, referindo: “Tendo em conta as situações por que algumas das crianças passaram e as causas atribuídas às interrupções de adoção, é necessário refletir sobre este assunto em quatro dimensões.”

Em primeiro lugar, é preciso ter em conta a seleção de candidatos – recomendando “a aplicação dos critérios adotados no manual, a bem da eficácia dos procedimentos para aferir da capacidade dos candidatos para o exercício da parentalidade adotiva; em segundo, diz ser necessário refletir a nível da formação dos candidatos, sustentando que deve ser “assegurado que é prestada aos candidatos a formação disponível no que toca à preparação e integração de crianças com necessidades de apoio particulares (NAP); em terceiro, é preciso fazer tudo a nível da preparação das crianças -, urge assegurar a preparação das crianças para a adoção fazendo-as participar no seu projeto de vida; em quarto lugar urge garantir a disponibilidade de meios para o acompanhamento necessário de cada caso, nomeadamente no que toca a possibilidade de promover períodos preparatórios de transição e de pré-adoção tecnicamente acompanhados.

Pedro e João tiveram uma segunda oportunidade depois de terem sido devolvidos à instituição, já lá vão mais de cinco anos e tudo está a correr bem.

Samuel ainda hoje pergunta se não há uma família para ele

Samuel tem uma história diferente. Foi adotado e devolvido, mas ainda hoje continua a falar daquela família como “os meus pais”. Apesar de ter sido castigado no período em que viveu com eles. Samuel, chamemos-lhe assim, tinha comportamentos sexuais desadequados, que vinham da sua história de abusos na infância. Foi adotado por uma família em que o pai também revelou depois ter tido uma história idêntica.

“Receber esta criança foi um reativar de tudo, de toda a sua história, e não conseguiu lidar com isso”, explicou ao DN a psicóloga que acompanhou este caso. A criança, na altura, porque agora é já adolescente, “não correspondeu às expectativas daqueles pais, que queriam ter em casa um menino bem-comportado e isso não aconteceu”.

Samuel voltou à instituição. Faz terapia. Não voltou a ter outros pais, mas não deixa de ter o sonho de um dia poder estar em família. Rute Agulhas salienta: “Não se pode generalizar as atitudes do candidatos porque muitos têm as motivações certas, mas há outros que estão focados em si, nas suas necessidades e não nas das crianças.” E destes é frequente ouvir: “Não consigo resolver este assunto, se isto não correr bem, vou entregá-lo.” E questiona: “Estamos a falar de um filho. Entregamos os filhos biológicos quando se portam mal ou quando as coisas não correm bem? É por isso que defendo que temos de olhar para trás, para a avaliação dos candidatos, prepará-los, formá-los e apoiá-los.”

Um casal que se candidata à adoção não pode pensar que tem sempre uma forma de resolver o assunto: a devolução, porque as histórias repetem-se.

Simão também ansiava por uma família. Foi levado para uma instituição com uma irmã mais nova, acabaram por ser devolvidos. Simão testava as famílias, quando regressaram à guarda do Estado ficaram em instituições diferentes e o tribunal acabou por decidir que os dois voltariam à lista de adoção individualmente. A irmã já foi adotada. Ele tem 15 anos e perfeita noção de que não será, mas continua a perguntar: “Há alguma família para mim?”

“Já vi situações em que as crianças foram devolvidas e depois foram adotadas e o processo correu bem, mas é claro que os pais que vêm num segundo momento têm um nível de exigência muito maior. O que espera uma criança que já foi devolvida? Que a devolvam a seguir, então pensa: ‘Não me vou ligar, já sei que vou ser rejeitada’, e testa a família até mais não, porque a mensagem que pretende receber é que, afinal, eles aguentam e a amem de forma incondicional.”

Samuel e Simão não são os únicos que após terem sido devolvidos continuam a acreditar e a ter esperança de que um dia terão uma família. Porque, no fundo, foi sempre isso que lhes faltou. Para eles, a realidade é uma só: “Ninguém os quer.” E é-lhes difícil aceitar. É-lhes difícil aceitar que afinal para eles não há uma resposta.

Mais de 7500 crianças e jovens já com processos encerrados regressaram às CPCJ em 2018

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Ana Mafalda Inácio

39.053 situações de perigo comunicadas às Comissões de Proteção de Crianças e Jovens (CPCJ) em 2018, mas só 13.905 diagnosticadas como perigosas de facto. 31.186 processos de proteção instaurados, mas destes 7.564 são de crianças que já tinham saído do sistema e voltaram.

 

Por cada 100 crianças e jovens a residir no País, 3,2 viveram situações de perigo em 2018, exigindo a intervenção das Comissões de Proteção de Crianças e Jovens (CPCJ). O número consta do relatório de atividade destas comissões e tem por base o registo de população que integra os Censos de 2011. Mesmo assim, é menor do que o de 2017, em que foram acompanhadas 3,7 crianças por cada 100.

É esta a realidade. Mas um dado preocupante é que 7564 crianças e jovens já tinham estado no sistema de proteção, a ser acompanhados pelas comissões, e já lhes tinha sido atribuída uma medida de proteção ou definido um projeto de vida, quer fosse o regresso à família, a entrega a um outro elemento da família alargada, a adoção, etc. O certo é que voltaram ao sistema.

Disto mesmo dá conta o relatório que esta quarta-feira à tarde é apresentado em Tavira, num encontro nacional das CPCJ, e que retrata a atividade de 2018 (ver mapa em baixo). O documento revela que dos 31 186 processos instaurados nesse ano, um em cada cinco, os tais mais de sete mil, são processos reabertos.

“Uma percentagem considerável”, como admitiu a secretária de Estado da Inclusão para a Pessoa com Deficiência, Ana Sofia Antunes, em conferência de Imprensa com os jornalistas. No entanto, salvaguarda, “não podemos olhar para estes números e dizer que são 7564 situações em que as CPCJ falharam.” Isto acontece porque “as circunstâncias mudam muito na vida destas crianças. Cada vez mais temos um contexto familiar muito flutuante, o termo não é simpático, mas é o que é, e, de repente, este contexto pode desestabilizar apenas com a entrada ou saída de algum elemento do agregado, com uma mudança de escola, de comunidade de amigos, etc. Qualquer circunstância destas pode justificar a reabertura de um processo.”

A presidente da Comissão Nacional de Promoção dos Direitos e Proteção das Crianças e Jovens (CNPDPCJ), Rosário Farmhouse, concorda, e reafirma que a principal razão para a reabertura dos processos tem a ver com “mudanças no contexto familiar.”

Mas o porquê? Que mudanças ou o que pode ter falhado na medida ou projeto de vida dado aquelas crianças e jovens? O relatório não divulga. Essas questões ficam para os técnicos, embora “o papel dos técnicos seja o de nunca se deixarem de questionar”, afirma a presidente da Comissão Nacional, explicando que não é fácil tomar decisões em matéria que envolvam famílias, crianças e jovens. “A complexidade dos casos é desafiante. O ter de decidir um projeto de vida é sempre um desafio muito grande para os técnicos, para as comissões, mas estas também estão cada vez mais capacitadas para isso. Por isso, tem-se apostado muito na formação. Isto ajuda, mas nunca é fácil este trabalho. É feito com o consentimento das famílias, se não é, passa para outra etapa, para o tribunal, mas caso a caso é analisado para se decidir em consciência o que é melhor para aquela criança.”

E o que é o interesse superior da criança, como refere a lei de proteção das crianças e jovens que em 2019 faz 20 anos? Na lei há várias medidas, desde a reintegração na família ou junto de um familiar alargado, adoção e o apadrinhamento civil. Mas, muitas vezes, a solução é manter muitas das crianças e jovens em instituições até à autonomização, que é considerado também um projeto de vida.

De acordo com o documento das CPCJ, na maioria das casos é considerado que o interesse superior da criança está no seio familiar, e a medida aplicada é a sua reintegração com apoio dado aos pais. “É a medida mais aplicada pelas CPCJ e de forma consistente”, pode ler-se. Aliás, “há um largo predomínio de medidas aplicadas em meio natural de vida, designadamente de apoio junto dos pais ou de outro familiar. Esta tendência mantém-se nos últimos cinco anos e sobretudo no que respeita ao escalão entre os 15 e os 17 anos.”

No fundo, uma tendência que está em consonância com o que diz a lei de proteção e promoção dos direitos da criança, que define que a intervenção prioritária seja junto da família de origem ou no meio natural de vida. Aos jornalistas, a secretária de Estado Ana Sofia Antunes defendeu o mesmo principio, “o superior interesse da criança deve estar em consonância com o da família.”

Os números revelam que das 14 007 medidas de proteção e promoção aplicadas a crianças e jovens no ano de 2018, 83,4%, mais de 13 mil crianças, tiveram como solução o regresso à família, com intervenção de apoio junto dos pais; 8,9% foram reintegrados junto de outro familiar; 5,8% foram para acolhimento residencial, institucional – registando-se aqui, apesar de tudo, uma redução relativamente a 2017, em que a percentagem foi de 6,6% -; 1,0% foi entregue a pessoa idónea; 0,7% tiveram propostas para autonomização e 0,1% foi para acolhimento familiar.

No total, e relativamente a 2017, foram aplicadas menos 1715 medidas de proteção e promoção. O que, segundo a governante, significa que todo o trabalho de prevenção que tem vindo a ser feito junto das famílias pode estar a dar resultados. Sublinhando mesmo que, apesar da “realidade crua dos números”, há que “salientar as atividades que as CPCJ têm realizado e que que têm contribuído bastante para estes resultados, que, apesar de tudo, não deixam de ser positivos na medida em que se conseguiu uma redução geral do número de processos, seja em número de processos instaurados ou em número de situações diagnosticadas.”

O relatório revela também que, em 2018, às CPCJ foram comunicadas 194 situações de emergência, de perigo eminente, em que tiveram que intervir de imediato e passar o processo ao Ministério Público.

13 905 situações de perigo, negligência é a principal causa

A estatística tem vindo a melhorar e o último ano foi o que obteve melhores resultados desde 2014. Mesmo assim foram comunicadas 39 053 situações de perigo às CPCJ, menos 240 do que em 2017. Um número que significa, ao mesmo tempo, que “a sociedade está alerta para estes casos e preocupada com o bem o estar das crianças”, referiu Ana Sofia Antunes.

Destas, foram diagnosticadas como representando verdadeiramente perigo para a criança ou jovem 13 905 – as restantes situações caíram, ou porque a situação de perigo já não subsistia ou porque nem sequer se confirmou.

Não há números exatos, mas tanto a presidente da comissão nacional como a governante deixam um alerta: “Há situações que se verificam que são falsas denúncias. São situações que surgem, muitas vezes, de pais em conflito, de familiares em conflito ou até de vizinhos.”

A negligência é a principal causa das situações de perigo, mais de 43% dos casos, seguem-se depois os comportamentos de perigo, que afetam sobretudo o escalão etário dos 15 aos 17 anos, com 18,7%, e que representam “situações de comportamento social incontrolável e indisciplinado, consumos de álcool, estupefacientes, adição a novas tecnologias”, explicou Rosário Farmhouse. O direito à educação aparece em terceiro lugar com 17,4% e a violência doméstica em quarto, com 11,9% das situações – destas 99% dizem respeito a casos de crianças que estiveram expostas à situação, mas que não foram vítimas. Só depois e, em menor percentagem, aparecem situações de mau trato físico, abandono, mau trato psicológico, abuso sexual, exploração infantil e outras.

A situação relatada em 2018 não difere muito da registada no ano anterior ou até dos últimos cinco anos. Mas também aqui há uma situação a salientar e, essa, tem a ver com o aumento dos comportamentos de perigo. “Não há grandes diferenças de um ano para o outro. A não ser um aumento registado relativamente à negligência. O que temos de realçar é a exposição dos jovens a comportamentos de perigo”, dos quais “os progenitores nem se apercebem e não os conseguem proteger, acabando por colocar em causa o seu próprio bem estar”, explicou Rosário Farmhouse.

A secretária de Estado alertou para o facto de “70% das crianças acompanhadas terem idades entre os seis e os 17 anos, e que a maior incidência de acompanhamento está concentrada entre os 11 e os 17 anos.” O que significa também que o acompanhamento do número de crianças entre os zero e os seis anos é residual.

De acordo com os dados do relatório, a negligência é a principal causa de perigo, desceu de 2014 até 2017, mas registou “uma ligeira subida deste ano para 2018.” Já os comportamentos de perigo têm vindo a aumentar nos últimos cincos anos, em cerca de três pontos percentuais. Os dados revelam que este item é já superior e às situações que colocam em perigo o direito à educação e até mesmo de violência doméstica.

Estes são os números, mas o que dizem da realidade portuguesa? A presidente da CNPDPCJ não tem dúvida de que “retratam os desafios dos tempos atuais e que têm a ver com várias circunstâncias, não só pelo facto de haver famílias mais isoladas, mais pequenas, mais ocupadas ou até eventualmente porque não estão tão atentas”, reforçando, contudo, que “os números no seu global têm vindo a descer e há todo um trabalho de prevenção e de sensibilização que está a ser feito e que tem tido algum efeito.”

Nove comissões acompanham mais de mil processos

Como diz a presidente da comissão nacional “este trabalho não é fácil”. As CPCJ têm uma formação alargada e restrita. A alargada integra representantes da comunidade, desde município às IPSS e às áreas da educação e saúde. A restrita é composta por cinco elementos sobre os quais recai as decisões, e deve integrar técnicos de serviço social da Segurança Social, representantes do ministério da educação e da saúde. Há comissões que trabalham com menos de 100 processos, algumas até com 30 a 40, mas outras têm mais de mil. Por isso, e segundo refere Rosário Farmhouse, não é possível saber ao certo quantos técnicos são necessários.

Neste momento, há 5162 técnicos espalhados pelas 309 comissões que existem no país. Em 2018, entraram mais 34 colaboradores, em 2017 eram 5128. A secretária de Estado Ana Sofia Antunes reconhece que os técnicos das CPCJ trabalham com uma “realidade diária e exigente e que o volume de trabalho que enfrentam e a carência de pessoal fazem com que, por vezes, se concentrem mais num trabalho de reação aos casos que surgem como casos efetivos e que urgem intervenção.”

Mas deixou uma mensagem: “As principais linhas orientadoras para os próximos anos, para que se consiga reduzir ainda mais estes números, é a aposta no reforço do trabalho de prevenção. “Queremos que a prevenção dos maus tratos na infância cheguem ao maior número de municípios. Quanto maior for a prevenção mais efetivo será o trabalho das CPCJ.”

A presidente da CNPDPCJ defende também que se deve “criar uma cultura da prevenção dos direitos na sociedade portuguesa que permita às crianças que estejam no centro das decisões e que tenhamos sempre medidas que as protejam preventivamente para evitar que as suas vidas tenham percursos difíceis.”

Das 309 comissões, nove, as maiores do país, Amadora, Sintra (Oriental e Ocidental), Lisboa (Norte e Centro), Loures, Matosinhos, Vila Nova de Gaia e Braga, trabalham mais de mil processos cada uma. Independentemente deste número e da complexidade dos casos, cada uma tem prazos a cumprir. Desde a abertura do processo de medida de promoção e proteção da criança há um prazo de seis meses para ser aplicada uma medida de proteção, que se pode estender até aos 18 meses. Nem sempre é cumprido.

Ana Sofia Antunes explicou que “são prazos máximos e devem ser cumpridos, mas não podemos garantir que o sejam sempre. Poderão existir situações em que não o sejam. Mas sabemos que existe um esforço cada vez maior por parte das CPCJ para que o sejam e para que se consiga obter resultados.”

Famílias de acolhimento vão ter direito a benefícios fiscais, faltas, baixas e abonos

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Há muito que se fala de mudanças na Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo sobre famílias de acolhimento. Agora vai haver novas medidas. O projeto de decreto de lei está em consulta pública a partir de hoje e por um mês.

Uma criança tem direito à educação, à saúde e ao bem-estar. Tem direito à proteção, à participação e à não discriminação. Tem direito à sobrevivência, aos cuidados adequados e ao seu desenvolvimento. Uma criança tem direitos. Ponto. Tem direito a que, em todas as situações ou decisões da sua vida, os intervenientes que nelas participem tenham em mente que acima de tudo é “o seu interesse superior” que deve estar sempre presente, como determina a Convenção dos Direitos da Criança, assinada pelas Nações Unidas a 20 de novembro de 1989.

 

Mas a verdade é que nem todas as crianças têm direito a ter direitos. Nem todas têm direito a nascer e a crescer com acesso aos cuidados básicos, nem tão-pouco com o direito a ter colo, mimo e afeto. Ainda é assim 30 anos depois da Convenção da ONU e depois de tantos e tantos especialistas alertarem e confirmarem que o “colo é tão importante quanto o leite” ou, por outras palavras, que “as crianças que recebem colo serão adultos mais confiantes”.

Em Portugal, em 2017, havia 7553 crianças e jovens que estavam à guarda do Estado, por, num momento qualquer da sua vida, ter sido considerado que estavam em perigo. Já foram mais, em 2016 eram 8175. Há quem diga que a redução se deve ao facto de “termos cada vez melhores pais”. Assim se espera. Mas há quem defenda que ainda são demasiados os que esperam numa instituição ou em outra forma de acolhimento o regresso à família de origem ou por outro projeto de vida, como a adoção ou o apadrinhamento civil.

 

Há quem defenda que uma criança ou um jovem, enquanto espera que o sistema funcione e lhe encontre um caminho, um projeto de vida, como define a lei de proteção, deve ter o direito de poder viver, experienciar, o acolhimento numa família que a proteja, que dela cuide, que a acarinhe.

“Um bebé precisa de colo”, “uma criança precisa de mimo”, “uma criança precisa de uma família”, mesmo que não seja a sua. Tantas vezes se ouve frases como estas da boca dos próprios técnicos que trabalham na proteção de menores. Mas o certo é que hoje a principal medida de acolhimento de uma criança ou de um jovem em perigo ainda é o acolhimento residencial – ou seja, a institucionalização, seja bebé, criança até aos 6, 10, 12 ou 16 anos.

 

© Leonel de Castro/Global Imagens

Basta referir que das 7553 crianças e jovens no sistema, 6583 estavam institucionalizadas e só 246 encontravam-se em acolhimento familiar. Ou seja, 246 crianças e jovens acolhidos em 175 famílias, de acordo com os dados do último relatório CASA. Nenhum na área de Lisboa, já que aqui não há uma única família de acolhimento. O mesmo relatório refere que a medida tem sido aplicada mais no Porto, na Madeira, em Vila Real, Braga, Viana do Castelo, Coimbra e Aveiro.

As famílias de acolhimento estão na lei de proteção de menores desde 2008, mas, e como assume fonte do Ministério do Trabalho, da Solidariedade e da Segurança Social, “tem sido uma realidade pouco trabalhada, embora não se esteja a partir de um vazio”. Daí que tivesse sido necessária “uma reflexão aprofundada sobre o que devem ser famílias de acolhimento para se poder reincrementar a medida”, explicou a mesma fonte. Reforçando: “A intenção é que a criança seja acolhida num ambiente familiar, como qualquer outra criança, e numa lógica de apoio e de reforço das suas competências por um período, mas com vista a uma situação mais sólida.”

Foi nesse sentido que o MTSSS criou, em 2017, um grupo de trabalho que integra técnicos da Segurança Social, da Santa Casa de Lisboa e da Casa de Pia de Lisboa, para refletirem e trabalharem uma regulamentação que adaptasse “esta medida a uma nova lógica”, explicou a mesma fonte. O projeto de Lei está pronto e em consulta pública a partir desta sexta-feira por um período de 30 dias.

Acolhimento familiar preferencial até aos 6 anos

O objetivo é tornar a medida mais cativante, torná-la alternativa ao acolhimento residencial e até mesmo prioritária e até preferencial para crianças até aos 6 anos. Por isso, a ideia é poder criar uma bolsa de famílias de acolhimento, que serão avaliadas, selecionadas e recrutadas pelas entidades competentes, em todo o país e de acordo com as necessidades existentes, “e sempre privilegiando a proximidade com a família de origem ou o meio natural de vida da criança ou jovem em causa, se não houver indicação em contrário”.

Mas para colocar em prática a medida, passados estes dez anos, houve mesmo “a necessidade de mudar o paradigma do que é o acolhimento familiar e ao que obrigava, havendo necessidade de alterar alguns dos seus pressupostos”.

Uma família que acolha uma criança com menos de 6 anos receberá 601,35 euros, com mais de 6 receberá 522,91.

Uma das principais mudanças prende-se com o facto de, até agora, quem se candidatasse a família de acolhimento tinha de se inscrever como trabalhador independente, o que exigia também contribuições e um contrato de prestação de serviços. Agora, quem se candidate e for aceite não terá de passar por esta modalidade. Mais: terá acesso a direitos sociais, como faltas, baixas médicas, em caso de doença, e acesso a todas prestações a que uma criança tem direito, como o abono de família.

Neste projeto está ainda consignado que estas famílias terão direito aos benefícios fiscais previstos no Código do Imposto sobre os Rendimentos das Pessoas Singulares e no Estatuto dos Benefícios Fiscais. E porque “a situação acarreta encargos”, o Estado compromete-se também com a atribuição de um apoio pecuniário por criança ou jovem acolhido, correspondente a 1,2 vezes o valor indexante dos apoios sociais.

“Estes são os valores que entendemos necessários para que uma família possa fazer face às despesas quando tem a seu cargo uma criança. A estes acrescerão todas as prestações sociais como abono de família, bonificação por deficiência, subsídio de assistência à terceira pessoa, etc.”, pormenorizou a mesma fonte.

Educação e saúde devem garantir serviços

Este projeto de lei tem como objetivo também agilizar alguma das burocracias e dos entraves detetados em algumas situações de crianças acolhidas que depois não recebiam cuidados de saúde nem de educação básicos de forma imediata. Por isso, a lei define que os serviços do Ministério de Educação devem garantir, em tempo útil, a efetiva inclusão escolar e a oferta formativa adequada a estas crianças e jovens. Em relação aos serviços do Ministério da Saúde, refere mesmo que devem priorizar o acesso destas crianças.

“Com a atual legislação pode haver dificuldade em inscrever uma criança numa escola a meio do ano, na zona de residência da família de acolhimento, mas esta situação vai ficar inscrita na lei. Fizemos um levantamento presencial junto das IPSS que têm acordos de cooperação com a Segurança Social para se perceber quais eram as maiores dificuldades para que pudessem ser corrigidas com esta nova legislação. E estamos já a trabalhar neste sentido com os outros ministérios”, garantiu ao DN fonte do MTSSS.

 

Quem pode candidatar-se

O projeto em discussão estabelece que pode ser candidato a família de acolhimento “pessoa singular, duas pessoas casadas entre si ou que vivam em união de facto, duas ou mais pessoas por laços de parentesco e que vivam em comunhão de mesa e habitação”. Pelo acolhimento familiar ficará responsável um dos elementos da família, mas estas não poderão ter “qualquer relação de parentesco com a criança ou com o jovem”.

No documento, lê-se ainda que cada família poderá acolher até duas crianças ou jovens, mas a título excecional e devidamente justificado poderá acolher mais. Os candidatos deverão ter idade superior a 25 anos e inferior a 65, não serem concorrentes a adoção, terem condições de saúde física e mental e possuir preparação e motivação afetiva para ser família de acolhimento e condições de habitabilidade, etc.

As famílias serão avaliadas e recrutadas pelas entidades competentes, a Segurança Social e a Santa Casa de Lisboa, que terão de gerir as vagas neste tipo de acolhimento a fazer o acompanhamento. Cabe-lhes também divulgar a medida através do desenvolvimento de campanhas para a captação de famílias candidatas.

Na lei estão ainda definidos os direitos e os deveres quer das crianças e dos jovens acolhidos, quer das famílias de acolhimento, como das de origem.

A medida estará em discussão pública até ao final de maio, para que os contributos dados pela sociedade possam ser analisados pelo ministério e contemplados ou não na versão final. Só depois será agendada a discussão e a aprovação em Conselho de Ministros. Em relação à data para a entrada em vigor, “não possível indicar”, refere a mesma fonte. Como não é também possível indicar o número de famílias necessárias para acolher as crianças e jovens a quem a medida deve ser atribuída.

Uma coisa é certa: de acordo com a lei, quando a medida for executada já deve ter por base a “previsibilidade da reintegração da criança ou do jovem na família de origem ou em meio natural de vida”; quando não for possível esta solução, está também previsto “a execução e a preparação da criança ou do jovem para a adoção ou a autonomia de vida”.

O acolhimento familiar está previsto na lei e consiste “na atribuição da confiança da criança ou do jovem a uma pessoa singular ou a uma família, habilitada para o efeito, visando proporcionar à criança ou ao jovem a integração em meio familiar estável que lhe garanta os cuidados adequados às suas necessidades e ao seu bem-estar.”

Ao DN, em entrevista anterior à divulgação deste decreto-lei, a diretora da Unidade de Adoção, Apadrinhamento Civil e Acolhimento Familiar da Santa Casa de Lisboa, Isabel Pastor, defende que a tendência para o futuro é que o acolhimento institucional seja desmantelado. “A meta é que dentro de dez, quinze ou 20 anos toda a criança com necessidade de acolhimento o seja em família.”

Ana Mafalda Inácio

Famílias de acolhimento “congeladas” até existirem meios de fiscalização

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Aviso foi feito pela secretária de Estado da Inclusão das Pessoas com Deficiência. Em dez anos, a colocação de crianças em risco em famílias sem serem as suas sofreu um decréscimo de 73%. Em 2017 existiam 7553 crianças e jovens em situação de acolhimento, o que é também o número mais baixo numa década.

Chamam-se famílias de acolhimento e são uma das soluções que a nível internacional tem vindo a ser privilegiada para dar guarida às crianças e jovens que são retirados aos seus núcleos familiares por se encontrarem em risco. Em Portugal continua a ser uma opção minoritária e por agora assim vai continuar, garantiu nesta segunda-feira a secretária de Estado da Inclusão das Pessoas com Deficiência, Ana Sofia Antunes.

“Enquanto não tivermos os meios necessários para garantir a supervisão e fiscalização das famílias de acolhimento não nos sentimos seguros para aumentar o seu número, embora seja essa a nossa vontade”, disse na apresentação do relatório Casa – Caracterização Anual da Situação de Acolhimento de Crianças e Jovens relativo a 2017.

Sem esta fiscalização, o acolhimento familiar pode constituir “um susto” já que tudo se passa dentro de portas, sem outras testemunhas do que os membros da família, o que não sucede nos lares para crianças e jovens, frisa Ana Sofia Antunes.

O relatório CASA dá conta de que só existem actualmente 178 famílias de acolhimento e que no espaço de uma década se registou uma redução de 73% na oferta desta solução. Segundo o Instituto de Segurança Social (ISS), tal ficou a dever-se em primeiro lugar ao facto de a partir de 2009 ter sido proibida a colocação de menores em famílias com as quais tivessem laços de parentesco, o que era até então a principal opção.

Certo é que no ano passado só 3% (246) dos 7553 menores que estavam em situação de acolhimento tinham sido colocados em famílias, apesar de a lei em vigor recomendar que se privilegie o acolhimento numa família, em especial quando as crianças têm até seis anos. E da prática internacional ter levado Portugal a ficar incluído na “liga dos últimos”, como disse ao PÚBLICO há um mês o professor de Serviço Social e Política Social no Trinity College, em Dublin, Robbie Gilligan, que faz investigação sobre crianças e jovens à guarda do Estado.

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Seis ou mais anos em lares

À semelhança do que sucede nos lares, o acolhimento familiar é concebido para ser temporário. Mas o relatório CASA mostra que a maioria (149) das 246 crianças colocadas em famílias permanece por lá seis ou mais anos. Nos lares esta é a situação em que se encontram 19,6% dos cerca de 6600 menores ali acolhidos, sendo que 43,2% permanecem nestas casas durante um ano ou menos. A duração média do acolhimento nas várias respostas é de 3,6 anos.

É uma experiência que o ISS descreve como sendo “devastadora na vida das crianças em acolhimento”, mas que foi vivida por 2687 menores (35,6%) que em 2017 estavam nesta situação. Trata-se da dança entre instituições, as chamadas transferências de um lar para outro, que por vezes se repetem duas ou mais vezes como sucedeu com 637 dos menores acolhidos.

Acolhimento sobe entre os mais velhos

Este é um dos aspectos do actual sistema de acolhimento que irá merecer particular atenção por parte da tutela, no âmbito da revisão do actual sistema de protecção que terá de ser levada por diante devido sobretudo à “alteração do seu público-alvo”, afirma a secretária de Estado. E em que consiste esta mudança? Na última década “registou-se um crescimento de 4% no acolhimento do grupo entre os 15 e os 18 anos, ao mesmo tempo que se verificou um decréscimo de 40% no escalão dos zero aos 14 anos”.

Ou seja, as crianças e jovens em acolhimento são hoje mais velhas e isso impõe que as respostas existentes sejam “adequadas a este novo universo”, defende Ana Sofia Antunes, que aponta como exemplo o incremento dos chamados apartamentos de autonomização, onde os utentes são acompanhados com vista à sua transição para a vida adulta. Em 2017 havia 79 jovens nestes apartamentos.

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No total, o número de crianças e jovens em acolhimento em 2017 (7553) é o mais baixo em dez anos. Para Ana Sofia Antunes são “boas notícias”, uma vez que esta redução, afirma, resulta de existir “mais e melhor trabalho de acompanhamento” e também de uma aposta forte na prevenção.

Problemas de comportamento e não só

Entre as crianças e jovens acolhidos continuam a ser maioritários (61%), contudo, os que, no léxico dos técnicos, apresentam “características particulares”, sendo que muitos acumulam mais do que uma. Entre estas “características particulares”, a que tem maior peso (28%) respeita a problemas de comportamento, seguindo-se-lhe os relacionados com a área da saúde mental (19%). Estes valores são semelhantes aos de 2016. No conjunto, cerca de metade dos jovens em acolhimento têm acompanhamento regular por parte de psiquiatras e psicólogos.

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Os problemas de comportamento são também frequentes entre os 2857 jovens que terminaram o acolhimento em 2017, afectando 34% desta população. O segundo maior problema prende-se com o consumo de estupefacientes, que é seguido por 403 (14%) dos menores que abandonaram o acolhimento, sendo que cerca de 100 são descritos como toxicodependentes. Dos que saíram em 2016, 76 estavam nesta última situação.

A maior parte (64%) dos que cessaram o acolhimento em 2017 voltaram para a família, mas o fim desta experiência também foi ditado por várias outras razões, entre as quais fugas prolongadas (mais de um mês) que levaram o sistema a dar baixa de 77 dos seus utentes.

Os que desaparecem

É a primeira vez que o fenómeno das fugas prolongadas é analisado num relatório CASA e essa será a razão por sobrarem ainda muitas dúvidas. Por exemplo, por que é que no grupo dos 15 aos 20 anos são as raparigas que estão em maioria entre os fugitivos? Cerca de 60 desapareceram durante mais de um mês, enquanto entre os rapazes este número desce para 37. No total houve 116 fugas prolongadas.

Outra novidade deste último relatório CASA é a apresentação de dados relativos aos menores estrangeiros que estão em acolhimento por se encontrarem abandonados. São 46 no total e, segundo o ISS, a maioria foi vítima de redes de tráfico humano.

Como tem sido norma, a principal situação de perigo dos jovens que estavam em acolhimento em 2017 prende-se com casos de negligência, a que se seguem os maus-tratos psicológicos e físicos.

Clara Viana

Crianças institucionalizadas ganham amigos para a vida

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Alguma vez pensou que as crianças acolhidas em instituições não sabem o que é uma família, nunca foram às compras ao supermercado e não sabem o que é tempo sem fazer nada? O projeto Amigos p’ra Vida pretende dar apoio concreto e relacional a estas crianças.

Sofia Marques e o marido tornaram-se amigos de duas meninas que estavam numa instituição de acolhimento. Iam levando as irmãs para passeios ou fins de semana em sua casa. Quando voltaram para casa da mãe, o contacto manteve-se. «Uns meses depois convidou-nos para sermos padrinhos de batismo delas.»

Os quatro filhos do casal nasceram e sempre conviveram bem com as meninas. «Quando nasceram, elas já existiram e é como se fossem irmãs mais velhas. Não houve necessidade de se adaptarem a uma criança que vem de fora. Sempre tivemos a casa preparada para todos. Quando tivemos o terceiro filho é que tivemos de trocar de carro», conta a rir.

Projeto tem sido um sucesso
A história de Sónia e Sara serviu de inspiração ao projeto Amigos p’ra Vida. Joana Seabra Gomes, Joana Simões Correia e Sofia Marques são as responsáveis pela ideia que tem como suporte a Candeia. A associação começou, em 1991, por dinamizar campos de férias para crianças institucionalizadas e, atualmente, desenvolve atividades durante todo o ano.

Com os Amigos p’ra Vida, Joana Seabra Gomes explica que «a ideia é trazer às famílias a oportunidade de conhecer estas crianças e criar relações de amizade, mas numa perspetiva duradoura, para a vida e de acordo com a necessidade da criança». O projeto nasceu há cerca de um ano. Já se inscreveram 88 famílias, participam 16 instituições e há 39 crianças sinalizadas, das quais 22 têm relações de amizade com 20 famílias voluntárias.

Família biológica dá autorização
Teresa é mãe de uma menina com Amigos p’ra Vida. Os seus nomes são outros, mas a história é esta. A menina foi institucionalizada quando ainda era bebé e «não tinha noção do que era uma família». Durante algum tempo não pôde ter sequer ter visitas dos pais.
Na instituição «consideraram que estava em risco psicológico e precisava de ter a noção do que era uma família. Perguntaram-me se eu concordava com os Amigos p’ra Vida e concordei», recorda Teresa. Depois de Luísa voltar para casa, a mãe concordou que os amigos se continuassem a encontrar. «Não queria que ela ficasse com a sensação de perder aquela família. É bom para ela e ela gosta muito», afirma.
A ajuda concreta também tem sido útil. «Nas férias de Natal, os irmãos estiveram num centro de estudo, mas os voluntários não podiam ocupar-se dela. A família amiga ofereceu-se para ficar com a Luísa e tem estado lá.»

Tudo é possível
Mas que ajudas são possíveis nos Amigos p’ra Vida? Joana Seabra Gomes diz que pode ser um apoio «tipicamente de fim de semana, em que estes amigos funcionam como complemento à vida da criança e indiretamente à família biológica». Outro tipo de apoio destina-se às crianças com perspetiva de ficarem nas instituições até à idade adulta. «Têm pouca rede social e o que queremos é que tenham mais esta rede para terem um sítio para ir almoçar ao domingo, ou alguém que os aconselhe num primeiro emprego.» Ou que eventualmente venham a ser integradas na família.
Joana Simões Correia tem quatro filhos. A sua família tornou-se amiga de uma menina há um ano. A vida em família é essencial para crianças que sempre tenham vivido em instituições, como era praticamente o caso da amiga desta família. «É importante: “Agora vamos às compras”, porque nas instituições as crianças não vão às compras, as coisas aparecem feitas. “Agora vamos programar o que vamos fazer.” “Posso escolher o que vou fazer? Não tenho um plano de atividades?” “Podes fazer o que quiseres e podes andar pela casa toda, não tens de estar na sala A, B ou C.” Essas experiências são muito importantes. Poder ver como se vive em família. Ver que os membros da família, às vezes, discutem, zangam-se, e como é que resolve isso.»

Pode ler a reportagem completa na FAMÍLIA CRISTÃ de fevereiro de 2017.
Reportagem: Cláudia Sebastião
Fotos: D.R. e Cláudia Sebastião

Apadrinhamento civil atrai poucas famílias

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A lei que criou a figura do apadrinhamento civil entrou em vigor há cinco anos, mas esta solução para crianças ou jovens que não podem ser adotados tem tido pouca adesão das famílias.

 

Em dois anos, 2012 e 2013, não chegou a vinte o número de crianças ou jovens apadrinhados em todo o país. A Segurança Social identificou em 2013, 75 crianças em acolhimento que poderiam ter padrinhos civis, menos uma do que no ano anterior.

Teresa Antunes, da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa admite que se trata de uma medida exigente que não convence muitas famílias. “É como pedir a uma família que estabeleça uma relação de parentalidade com uma criança sem contudo serem pais. O que as pessoas nos dizem é que pensavam que se tratasse de uma relação mais esporádica, apoiar uma criança ao fim de semana ou funcionar como uma família amiga”, explica a responsável pela Unidade de Adoção, Apadrinhamento Civil e Acolhimento Familiar da Santa casa da Misericórdia de Lisboa.

Teresa Antunes acrescenta outros obstáculos. A situação económica de muitas famílias, algum desconhecimento sobre o apadrinhamento civil e o facto de os interessados, muitas vezes, não conhecerem quem vão apadrinhar.

A lei entrou em vigor há cinco anos e pode ser uma solução para os menores que não estão em condições de ser adotados. Ao contrário do que acontece nos casos de adoção, a criança ou jovem mantém os laços com a familia biológica.

Na Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, em cinco anos apenas se registou um caso de apadrinhamento civil.

Joaquim Ferreira