Este novo decreto-lei surge após o governo ter criado um grupo de trabalho, em 2017 – com técnicos da Segurança Social, da Santa Casa da Misericórdia, da Casa Pia e de outras instituições – para refletir sobre uma medida que já se encontrava na lei e que não tem sido muito aplicada. No país, por exemplo, há apenas uma instituição certificada para captar e formar famílias de acolhimento, em Lisboa não há sequer uma única família de acolhimento. Das 7553 crianças e jovens em acolhimento, só 246 estavam em acolhimento familiar em 2017, sendo este tipo de acolhimento considerado por muitos como o ideal.
O grupo encarregado de analisar a situação entregou no ano passado o resultado do trabalho que realizou. Fez inclusive uma proposta de projeto de decreto-lei que enviou para o ministério, mas a proposta que foi posta em discussão pública “é diferente da que foi entregue e muito mais reduzida”, disseram ao DN.
Muitas das matérias consideradas importantes foram remetidas para uma portaria que está a ser preparada e ultimada pelos serviços do ministério, mas sobre a qual nada se sabe por enquanto. Certo é que até 27 de maio o Ministério do Trabalho, da Solidariedade e da Segurança Social (MTSSS) recebeu nove contributos sobre o projeto em discussão, que “não serão públicos”, confirmou ao DN fonte do gabinete de comunicação.
A partir daqui, o projeto poderá ou não sofrer alterações. Depois irá a Conselho de Ministros para ser discutido e aprovado, seguindo para Belém para promulgação pelo Presidente da República, não tendo de passar pela Assembleia da República.
Trata-se de um decreto que representa mais uma alteração legislativa nesta matéria, pois o acolhimento familiar integra a Lei de Proteção e Promoção de Menores desde 2008 e já teve alteração em 2015. No entanto, “tem sido sempre uma realidade pouco trabalhada”, como admitiu ao DN fonte do ministério na altura em que o projeto foi divulgado.
O objetivo do governo é motivar e recuperar uma medida que é quase consensual que deve ser prioritária, sobretudo para as crianças até aos 6 anos. Daí o decreto-lei tornar o acolhimento familiar prioritário para as crianças desta faixa etária.
Isabel Pastor, diretora da Unidade de Adoção, Apadrinhamento Civil e Acolhimento Familiar, disse em entrevista ao DN, em abril passado, que “a tendência é para que passe a haver só acolhimento familiar”. O DN sabe que a Santa Casa também enviou um parecer sobre este projeto, mas não aceitou falar sobre o assunto. “Não é possível falar sobre este parecer.”
Das 7553 crianças e jovens em acolhimento no ano de 2017, só 246 estavam em acolhimento familiar.
“Tenho esperança de que não seja um retrocesso”
Entre os nove pareceres que chegaram ao MTSSS está o da direção técnica da IPSS Mundos de Vida, a única entidade com reconhecimento para fazer captação e formação de famílias de acolhimento; do psicólogo e professor universitário e especialista na área da infância e terapia familiar, Pedro Vaz Santos, do projeto Colab-Prochild – um laboratório colaborativo na área social e reconhecido pelo Ministério da Ciência e do Ensino Superior – do magistrado Paulo Guerra, juiz conselheiro e diretor adjunto do Centro de Estudos Judiciários, sempre ligado a esta área e um dos fundadores da associação CrescerSer, do especialista espanhol Jesus Palácios, perito que muito tem vindo a Portugal falar deste tema, e ainda o do movimento Amigos Pra Vida, que ganhou o prémio de empreendedorismo social em 2015 do BPI Solidário e cuja função é a reintegração familiar.
Celina Cláudio, diretora técnica da Mundos de Vida, uma IPSS de Famalicão que tem como desafio o acolhimento familiar e que já formou 124 famílias, disse ao DN que a instituição analisou o documento e “algumas notas de considerações que achámos importantes”, sublinhando em primeiro lugar que um dos aspetos positivos deste novo decreto é o facto de “terem ficado salvaguardados os direitos e os deveres das famílias de acolhimento. Até à data, estas não tinham qualquer proteção laboral ou benefícios fiscais”.
Mas sublinhou que ficou no ar uma preocupação: “Diz respeito aos critérios, aos requisitos e à seleção das famílias de acolhimento, que neste decreto não estão considerados, remetendo toda esta matéria para uma portaria que ainda se desconhece. É uma matéria que diz respeito aos candidatos e que é importantíssima.”
“Esta matéria é bastante importante para o processo de captação e de formação das famílias de acolhimento. Até para poderem desempenhar o seu papel e a sua função. Uma família de acolhimento tem sobretudo um papel reeducativo, que não se coaduna com a experiência parental que, na sua maioria, as famílias que estão nesta bolsa possam ter. Têm experiência parental mas com os seus filhos, o que é muito diferente do que enfrentam no dia-a-dia e das estratégias educativas que são necessárias perante uma criança que viveu um conjunto de vivências traumáticas. É por isto que a definição de condições, critérios, requisitos, e que não estão explanados neste decreto, é importante. ”
Sobre se esta situação poderá constituir um retrocesso relativamente à legislação que está em vigor e que nunca foi completamente aplicada, a diretora técnica da Mundos de Vida afirma: “Tenho esperança de que não constitua um retrocesso. Neste momento há um conjunto de experiências adquiridas, nomeadamente a atuação da nossa própria instituição – que funciona desde 2006 – que devem ser aproveitadas para sustentar a portaria que ainda falta. Portugal tem de recuperar o atraso que tem relativamente a outros países neste tipo de acolhimento, não pode começar do zero.”
Celina Cláudio dá como o exemplo o facto de neste novo decreto-lei não estar bem definido o papel que cada instituição desempenha neste processo, como o papel da própria tutela. Por outro lado, o documento “também não faz qualquer alusão às modalidades de acolhimento familiar”. E, com a experiência que já existe no país nesta matéria, “quer a intervenção dos profissionais quer a de entidades e organização do próprio sistema de acolhimento, deveria estar mais trabalhado no decreto”. Por isso espera que “todos estes aspetos sejam considerados na portaria que ainda falta e que realmente seja possível evoluir com as experiências que já existem”.
E defende que é necessário que seja tida em conta a experiência já adquirida pela Mundos de Vida, que funciona desde 2006 e cujo balanço “é muito positivo. Penso que através do nosso trabalho é possível provar que é possível existir em Portugal um serviço mais especializado em acolhimento familiar. A Mundos de Vida atua de acordo com um novo modelo de intervenção com base em procedimentos-chave, que permitem formar e acompanhar as famílias e portanto melhorar a qualidade da resposta que se dá”.
Mas argumenta: “Há sempre aspetos a melhorar, como o que aconteceu agora no que respeita a apoios e a benefícios, porque estas famílias não são profissionais, são famílias que entendem o acolhimento familiar como uma missão, a motivação é altruísta e solidária, apenas querem acolher e ajudar uma criança.”
Um projeto impreciso, vago, que deixa uma frustração muito grande
Pedro Vaz Santos, psicólogo, professor no Instituto Superior de Psicologia Aplicada (ISPA) na área de pós-graduação em proteção e família, terapeuta e formador na Sociedade Portuguesa de Terapia Familiar, é ainda mais crítico relativamente a este projeto do governo.
O psicólogo, que enviou um parecer a título individual mas com outros colegas que trabalham na área, diz: “Trata-se de um projeto que nos deixou a todos um bocadinho frustrados do ponto de vista do processo legislativo.” E alguns receios, sobretudo se o que deve ser alterado ou especificado não o for e o governo tentar aprová-lo como está e sem qualquer avaliação de outra entidade, nomeadamente da Assembleia da República. “O projeto pode ser aprovado pelo ministro da tutela e depois pelo Conselho de Ministros tal como está. Isto se os deputados da Assembleia da República não o fizerem descer à comissão parlamentar para uma avaliação”, alertou o psicólogo.
Para Pedro Vaz Santos, há várias situações que podem representar um retrocesso relativamente ao projeto que está em vigor. “Por exemplo, neste momento há uma experiência pontual no norte do país, em Famalicão, que é levada a cabo pela Mundos de Vida, que está a funcionar e bem, e o que vai ser desta experiência?”
A frustração que surge em primeiro lugar tem que ver com o facto de “o decreto estar redigido de uma forma extremamente confusa, pouco clarificadora e remetendo para uma portaria a posteriori todas as clarificações necessárias. Só isto torna tudo muito mais complicado”, afirmou ao DN.
Por outro lado, tudo o que diz respeito aos critérios que poderiam definir as várias tipologias de acolhimento familiar – como especificar a que crianças se destina, a que famílias, como se deve articular as famílias de acolhimento com as biológicas, como deve ser tudo feito na prática? – não está clarificado. Ou melhor, “está extremamente vago e impreciso”.
O professor do ISPA sublinha também o facto de o novo decreto lançar a confusão sobre o papel que cada um dos intervenientes vai desempenhar. “Não está claro do ponto de visa legislativo o que compete às entidades gestoras e às entidades de enquadramento.”
Quanto às entidades gestoras, “vamos imaginar que é a Segurança Social – que tutela, regulamenta e que pode estabelecer acordos de cooperação com as entidades de enquadramento -, que poderão ser IPSS, não se percebe muito bem quais são os papéis de cada uma destas entidades. Não está clara até onde vai a atuação de cada uma, o que é uma entidade regulamentadora dos processos e o que é uma entidade de enquadramento que deveria um interveniente ativo dos processos.”
Professor universitário alerta que projecto de decreto-lei apresentado pelo Governo ainda deveria sofrer uma avaliação parlamentar.
Aliás, argumenta, a falta de clarificação de algumas matérias constantes no projeto vai ao ponto de não se perceber qual o papel da Santa Casa de Lisboa. “Passa a haver uma intervenção da Santa Casa da Misericórdia, que parece dar-lhe um protagonismo maior do que aquele a que estamos habituados. De acordo com a forma como está redigido o projeto, parece que na área de Lisboa a Santa Casa assumirá os dois papéis, de entidade gestora e de entidade de enquadramento.”
Questionado sobre se isso é necessariamente prejudicial, o psicólogo refere que “tudo depende da maneira como se vê”, mas considera que “o facto de o decreto-lei não ser específico na diferenciação de papéis dos diferentes intervenientes irá provocar o caos no país inteiro. Se calhar, Lisboa viverá uma situação menos caótica, porque se esse caos for importado para dentro da Santa Casa, esta irá resolvê-lo internamente”.
A questão é: “Quem olha para este decreto como um documento para potenciar casais a serem famílias de acolhimento percebe que isto não tem um efeito prático significativo, porque, quando as famílias tentarem perceber como podem candidatar-se e não encontrarem algo mais concreto em relação ao seu papel, isto até pode funcionar mais como medida dissuasora.”
Mais. O decreto não define sequer tempos nem prazos. Ou seja, não dá à família a perceção de controlo nem do que poderá acontecer aos três, seis e até mais meses das suas vidas. “As famílias podem sentir que estão claramente a ser atiradas para um vazio e o mais certo é que desistam.” No diploma anterior os vários tipos de acolhimento, quer fosse o de emergência, temporário ou de longa duração, estavam definidos.
Outra crítica formulada pelo psicólogo tem que ver com o facto de se misturar no mesmo patamar de decisões processos que estão em fases diferentes, uns na fase inicial e ainda na alçada das comissões de Proteção de Crianças e Jovens, outros já em fase de litigância. “São realidades diferentes e era importante que ficassem clarificadas para que pais saibam com quem estão a trabalhar, se com a CPCJ se com o tribunal, e quais são as regras do jogo.”
O professor do ISPA pormenoriza: “É a maneira como se constroem as decisões e as soluções que não está clara, e isso pode introduzir ansiedade e inespecificidade junto das famílias, e o futuro ninguém o consegue adivinhar. Mas é este detalhe que um diploma regulamentar deve introduzir, e isso não está neste projeto.”
Pedro Vaz Santos relembra que o acolhimento familiar foi uma medida revogada em 2015. “Revogaram uma série de artigos que remeteram para uma nova regulamentação. Está-se este tempo todo à espera, à espera de medidas que pudessem dar impulso à sociedade para que a medida começasse verdadeiramente a ser implementada, mas que poderá não ser assim por não haver uma clarificação de aspetos fundamentais.”
Ministério disse ao DN que até ao dia 27 de maio recebeu nove contributos para serem analisados no âmbito deste projeto.
Uma nota positiva e depois uma “manta de retalhos”
A advogada Sofia Marques, coordenadora da associação Amigos Pra Vida, analisou o projeto e diz que se trata de um documento legislativo que representa “claramente um retrocesso” em relação ao projeto que está em vigor. Tem uma nota positiva – “os apoios e os benefícios fiscais e laborais que são dados a estas famílias e que há muito eram devidos.”
Sofia Marques, tal como Celina Cláudio e Pedro Vaz Santos, aponta também a falta de clarificação, ou a ausência de alguns pontos essenciais como “os requisitos para seleção e formação de famílias, os requisitos para os vários tipos de acolhimento, a falta de clarificação dos papéis de cada uma das entidades, quer sejam gestoras ou de enquadramento”.
Aliás, a ser como está neste projeto, “há uma grande novidade, tudo está assente num processo mais centralizador – Segurança Social, Santa Casa e Casa Pia, entidades que já tinham competências nesta matéria e que nunca conseguiram desempenhá-las”.
A advogada receia que, neste momento e dado o período legislativo que se vive, este projeto de decreto-lei, que ainda necessita de uma portaria para regulamentar as matérias que nele não estão definidas, seja aprovado à pressa e sem qualquer hipótese de avaliação parlamentar. Se for aprovado como está, “é uma desilusão”, quando se precisa tanto de que se fale e se aposte “no acolhimento familiar”.