O dia em que 14 crianças ganharam uma família
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Levaram berços e camas, montaram quartos novos e renovaram várias vezes o stock de fraldas, leite e roupa. Quando a Mimar decidiu fechar, todas as crianças que acolhia foram viver para casa dos colaboradores da instituição e de famílias voluntárias. Foi assim que alguns bebés começaram a dar gargalhadas. Nem todos voltaram – pelo menos por enquanto.
Quando a bebé mais velha fez sete meses, Raquel pegou numa folha de cartolina prateada e montou uma coroa, que decorou com fotografias e o número sete. Trinta dias depois, a sessão fotográfica contou com um oito feito em papel e uma almofada grande, em formato de rosa. “Uma pirosada”, brinca a própria. Com o mais novo, os três e quatro meses foram igualmente celebrados – houve bolo, balões e o respetivo número feito com fraldas descartáveis. “O meu filho ajudou-me a encher os balões e a fazer o quatro.”
Durante mais de dois meses, além do seu filho biológico, de 11 anos, e da filha do seu marido, de cinco, Raquel e Diogo tomaram conta de dois bebés que até aí viviam na Associação Mimar, uma instituição de solidariedade social que acolhe temporariamente crianças até aos seis anos. Primeiro veio o mais pequeno, que Raquel tinha conhecido enquanto cuidadora na Mimar, com 14 dias e 1.800 quilos, um mês depois juntou-se a segunda bebé. “E de repente o nosso quarto passou a ter quatro habitantes”, conta Raquel Bernarda. “Ele veio para nossa casa com dois meses e já fez cá o terceiro e quarto, entretanto tivemos que pedir uma cama à Mimar. Ela chegou com seis meses e saiu já a gatinhar pela sala toda.”
Em casa de Joana Seabra Gomes, de 40 anos, ainda há cinco pessoas em vez das habituais quatro. Inês (nome fictício), tem sete anos e antes da pandemia já passava praticamente todos os fins de semana e férias com esta família. “Conhecemo-nos desde que ela tem quatro anos”, conta Joana. “Na altura a Inês precisava de uma família amiga, porque o seu projeto de vida era voltar para a família biológica. Entretanto houve várias reviravoltas e nós fomos sempre acompanhando. Quando a Sofia [Pombo, presidente da direção da Mimar] me pediu para ficarmos com ela em permanência por causa da Covid-19, para nós a resposta era óbvia.” Até então, Inês dividia quarto com as outras duas crianças da casa, com 10 e 12 anos. “Tínhamos um quarto com as camas e secretárias e outro para as brincadeiras, mas quando ela veio viver connosco decidimos transformar o quarto das brincadeiras no quarto dela, para ficar com um espaço próprio. Ela adaptou-se lindamente e agora o quarto já fica.”
Todos tiveram que adaptar-se a novas rotinas. Em casa de Raquel, depois de os bebés acordarem, o normal era mudarem-se ambos para a sua cama. “A seguir tomávamos o pequeno-almoço todos juntos e o meu marido ia trabalhar.” Desde que passou a haver bebés em casa, a secretária do filho também foi mudada para a sala. “Assim conseguíamos estar com os bebés e acompanhá-lo também. E ele também aproveitava para as suas escapadinhas dos trabalhos: ‘ah, espera, agora está um a chorar’. Disse-me várias vezes: ‘Pois mãe, quando eles saírem tu vais continuar a vê-los e eu não.”
Para Joana a maior dificuldade foram as aulas. “A Inês prefere passar o dia a brincar, exige um adulto mais permanente a ajudá-la a estudar e a fazer os trabalhos, eles são mais resilientes nisso, percebem que têm que fazer.” Mas nem tudo foi mais difícil: “esta forma diferente de aprendizagem tem resultado bem com ela. Tem muita dificuldade em estar concentrada e sentada a fazer uma ficha, mas ver a professora na televisão para ela é uma brincadeira. As aulas da telescola funcionam lindamente.” Desde que se mudou a tempo inteiro para casa da sua família, “tem feito uma evolução espetacular”, diz Joana, que pediu à Mimar um acompanhamento especial para ajudar Inês com as suas dificuldades na leitura.
Para a própria associação, a escola também trouxe dificuldades acrescidas. Durante o dia tinham, habitualmente, dois funcionários de manhã – quando muitos miúdos estavam na escola – e quatro à tarde. “Tínhamos cinco miúdos no primeiro ciclo e mais quatro ou cinco na creche e pré-escolar, com o fecho das escolas ainda precisei de mais pessoas para tomar conta deles”, explica Sofia. Essa é uma das razões por que Inês ainda não regressou à Mimar. “O que nós dissemos é que pode ficar o tempo todo que for preciso. As férias já eram todas passadas connosco e nestas circunstâncias, como estamos a trabalhar de casa, pode continuar” – pelo menos até 26 de junho, quando terminam as aulas, não regressará à Mimar.
As crianças passam, em média, 13 meses na Mimar, que consegue alojar 18 miúdos em simultâneo
Ver os pais em videochamada
Para ajudar com a logística, houve sempre um colaborador da associação disponível para transportar camas, fraldas, leite e o que mais fosse preciso até casa dos colaboradores e das famílias voluntárias. “Quando viemos para casa, em março, trouxemos roupas muitos quentes, e entretanto já nos vieram trazer outras mais frescas”, conta Raquel. Joana também pediu roupa. “Sempre que a Inês vinha assumimos que fazia parte da família e que era tudo da nossa responsabilidade. Tive sempre roupa, mas nunca tinha imensa coisa. Além disso a roupa que tínhamos estava a ficar-lhe curta, por isso pedi que me mandassem.” Inês levou também os livros da escola e alguns – poucos – brinquedos. “O peluche com que dormia já era cá de casa e não o larga.”
Todas as manhãs, o acordar dos miúdos era partilhado num grupo de whatsapp, tal como o fim do dia. “Estabelecemos, também uma reunião semanal via Zoom com a coordenadora e comigo, para perceber se estava tudo bem. Há um bebé que mudou imenso e eu costumava dizer à colaboradora que o tinha trocado”, conta Sofia. Os telefones serviam igualmente para alguns miúdos contactarem com as suas famílias biológicas. “Os miúdos que ficaram confinados connosco passaram a ver os pais por videochamada. Foi o que mais me custou nesta pandemia, porque em alguns casos há contactos e são muito importantes”, explica Sofia Pombo. Ainda assim, enquanto viveram em exclusivo com uma família, as videochamadas foram mais frequentes. “Há outra disponibilidade, na Mimar o rácio é de um adulto para quatro crianças e meia, ou estão com quatro ou com cinco, e se estou a gerir uma videochamada tenho a pessoa que devia estar com cinco com nove.”
Em casa de Joana, Inês foi mantendo assim o contacto com a sua rede. Era aliás a única forma de o fazer – até ao fim de maio, as crianças que vivem em instituições não tiveram direito a visitas de familiares; nos lares de idosos, por exemplo, as visitas começaram a ser autorizadas no dia 11 do mesmo mês. Essa foi uma das razões que levou a Mimar a acelerar a ida de duas irmãs para a sua família biológica. “Se não fosse assim, e isso é que nos assustou imenso, estas miúdas iam ficar sem ver a mãe.” A medida foi aprovada de forma provisória, primeiro por dois meses e entretanto por outros dois. “Ainda estamos a ver se corre bem.”
Neste momento, além de Inês e das duas irmãs que voltaram para a sua família biológica, já todas as outras crianças regressaram à Mimar. “Reabrimos com seis que regressaram e duas que foram acolhidas de novo.” Os mais crescidos, que já tinham saudades uns dos outros e vontade de socializar, foram os primeiros a voltar. “A Mimar tem um espaço de brincadeira que a casa das pessoas não tem, até lá fora andam de bicicleta. E todos saem imenso, mesmo os bebés vão dar uma volta no bairro de manhã.”
Em casa de Joana, Inês continua a ser a mais enérgica dos três. “Os rapazes são miúdos tranquilos e caseiros. Ela tem um bocadinho mais energia, mas temos um cão e uma gata e estão sempre aos pinotes.” Para Raquel, nada foi particularmente complicado, nem mesmo as noites. “O mais pequeno é um bebé super tranquilo. Acorda de quatro em quatro horas, às vezes estica até às cinco. A ela deitávamo-la às 20h30, 21h e chegava a só acordar às 6h, 7h. O meu marido dizia muitas vezes: ‘esta miúda é espetacular’. Só o fim da experiência não foi inteiramente pacífico, admite. “Custou-me um bocadinho voltar, a pessoa apega-se, mas sou crescida, tenho que saber lidar com estas emoções. É uma experiência que vou levar para a vida. E espero ter feito alguma diferença na vida deles.”
Os miúdos sentiram falta do espaço exterior da Associação.