Adoção: crianças que perderam tudo e ganharam tudo
No Dia Mundial da Criança, há histórias felizes. Histórias de crianças entregues a instituições à nascença, que perderam uma família mas que encontraram outra. Histórias de adoções felizes, que mudaram a vida de uns e de outros.
Maria Joana, Joaninha para a família, tem 5 anos e nasceu com trissomia 21. Foi entregue a uma instituição assim que nasceu, onde ainda viveu alguns meses. A adoção deu-lhe mais três irmãos. Levou meses sem chorar, hoje faz birras, ri-se, canta e dança. É fã dos Beatles. “Não há dia que não cante ou dance o Let It Be.”
Ana tem 4 anos. Foi retirada à família de urgência, esteve numa instituição e foi adotada há dois anos. Idolatra a irmã mais velha, Constança, que já tinha nascido na família para onde foi. É bem-disposta, sorridente, determinada e muito teimosa.
Manel tem 8 anos e é muito carinhoso, Diniz tem 6, é sensível, mas seguro. Alexandra é a mais nova, tem 5 anos e é um verdadeiro furacão. Foram retirados à família quando a mais nova ainda tinha só 2 meses. Viveram numa instituição durante três anos. No ano passado, foram adotados.
Histórias de crianças que perderam tudo e que ganharam tudo. Os pais dizem: “Nós ganhámos mais.” Joana, Ana, Manel, Diniz e Alexandra têm histórias invulgares, marcantes, mas também especiais. “O passado é o passado”, afirmam os pais. A adoção, só por si, já “não é um assunto. É uma história especial”, que mudou a vida de uns e de outros.
Joana e Miguel, Mariana e Martim, Catarina e Rui são pais de crianças especiais. Disso não têm dúvida. Alguns já eram pais biológicos, mas todos quiseram ser “pais do coração”. Os discursos cruzam-se nas intenções, nas decisões, nos momentos de entrega, nas emoções, fortes e difíceis, porque nem tudo é cor-de-rosa, porque um processo de adoção é duro, mas entendem que tem de ser assim. E, hoje, todos afirmam com veemência: “Não vemos a nossa vida sem eles.”
São assim os pais, aqueles que entendem que a uma criança basta o “amor”, “o afeto” para se desenvolver e ser felizes, para “serem os verdadeiros mestres que um dia carregarão a humanidade nas mãos”, como afirma Joana Morais. Todos eles têm para si que eles próprios fazem parte de um processo de “adoções felizes”, porque, as crianças, essas, também os adotaram. No Dia Mundial da Criança, há histórias felizes.
Let It Be passou a ser um hino lá em casa
“É Maria Joana.” Quando ouviu o nome do outro lado do fio, Joana Morais e Castro diz que se arrepiou, ficou sem forças, sabia que aquela criança lhe estava destinada. As técnicas da Segurança Social (SS) confessaram-lhe que estavam em dúvida se lhe deviam dizer ou não, e disseram.
Joana Morais e Castro recebeu este nome no batismo. Não tem Maria no nome, mas foi um dos que escolheu para dar também a todos os seus filhos biológicos, Henrique Maria, de 15 anos, Maria Leonor, de 12, e Maria Teresa, de 9. E esta criança de quem lhe estavam a falar era Maria Joana. “Um dia estava no escritório, pouco tempo depois de nos termos tornado oficialmente candidatos à adoção, e recebo um telefonema da SS a dizer que havia uma menina de 10 meses com trissomia 21 que se poderia encaixar no nosso perfil. Foi um choque, mas um choque bom.”
Decidiu perguntar o nome. Do outro lado, “houve um silêncio, mas depois, meio comovidas, disseram-me: ‘A menina chama-se Maria Joana.’ Naquele momento, “acho que ia desmaiando. Foi uma sensação de desfalecimento, de que me tinha caído mesmo uma criança nos braços, nasceu”.
É com Joana Moais e Castro, de 40 anos, que falamos, a família, que vive no Porto, só mais tarde estará toda reunida. O marido, Miguel, de 45, economista, está a trabalhar, as crianças na escola, e ela, jurista de formação, sempre ligada à área dos direitos humanos e de intervenção social, é a que tem mais tempo, porque, neste momento, goza de uma licença de assistência à família para “dar mais apoio à Joaninha nos desafios que ela tem agora”.
Joana fala e, em cada palavra, sente-se alegria, felicidade, agradecimento. Diz recordar “todas as palavrinhas” do telefonema em que soube, quando estava sentada à secretária no seu gabinete no Instituto Padre António Vieira, em que lhe disseram que havia uma menina com trissomia 21, de 10 meses, quase a fazer 11, que foi entregue à nascença numa instituição que estava para adoção. “Foi uma sensação de ficar sem força em todos os membros do corpo. Só pensava, ‘meu Deus o que está a acontecer? Será que estou a ser mãe?’ Maria Joana.”
A seguir ligou ao marido, foram para casa. Ele ficou com uma enxaqueca tão grande que não conseguia sequer ver luz. “Fechou-se no quarto. Eu não conseguia falar, mas a certa altura ele levanta-se e vai ao quarto das minhas filhas. Começa fazer medições para ver se cabia mais um berço…”
Joana e Miguel começaram a namorar cedo, ela com 18 anos, ele mais velho, casaram-se cinco anos depois, e assim continuam há 17. Confessam que sempre foram falando de adoção, mas “tivemos os nossos três filhos e não avançámos. Era aquele sim e não, aquela indecisão. Quando a Teresinha, que é a mais pequena, tinha 4 anos, achámos que era uma boa altura para começar a pensar a sério no assunto”.
Um dia o marido “foi à Segurança Social buscar os papeis de candidatura. Preenchemos e decidimos entregar”. Começámos o processo em março de 2014. Seguiram-se as formações na SS, as entrevistas individuais e as visitas a casa. Só em outubro de 2014 foram considerados oficialmente candidatos à adoção.
O tempo cumprido foi o que estava previsto na lei, seis meses desde que se entrega a candidatura até à conclusão do processo. Mas o antes destes seis meses foi difícil, porque a opção por um projeto destes envolveu “muitas conversas em casa, com amigos e família.” Mas tudo começou com o admitir que, se calhar, “somos uns sortudos e privilegiados como família”. Foi isso que os levou a querer partilhar o amor que têm uns pelos outros, “porque para nós as famílias são projetos de amor, independentemente de serem biológicas ou não”.
Quando se envolveram no processo burocrático perceberam que havia toda uma realidade que desconheciam e os critérios que tinham para adotar uma criança foram mudando. Até porque “se nos estávamos a meter num projeto de vida destes, não era para sermos nós a escolher o final feliz”.
Para eles a realidade era dura, “muitas crianças com problemas de saúde e portadoras de deficiência condenadas a ficar eternamente institucionalizadas e a não ter uma família”. Foi então que decidiram pôr “sim” em todas as cruzes dos papéis de candidatura. “Pensámos: vamos fazer isto como se fosse uma gravidez. Em nenhum dos nossos outros filhos quisemos saber como iam ser, portanto optámos por fazer a mesma coisa.” Mas, sublinha Joana, “com muita consciência de que a partir do momento que abríssemos o leque de características para receber uma criança que nos iria ser sugerida uma criança com algum tipo de problema de saúde ou com deficiência”.
Durante o processo, o único limite que havia, e imposto pelas próprias técnicas, era o da idade, “que fosse mais nova do que a mais nova da casa, para haver alguma ordem natural”. E o único não, que “nos custou muito e que foi muito doloroso, mas teve de ser, foi sobre se estaríamos disponíveis para receber uma criança em fase terminal de vida. Achámos que seria demasiado para a nossa família, para os nossos filhos”.
Perguntas que Joana diz que os fizeram ficar “a carburar muito, porque o processo de adoção é duro, muitas vezes saímos da SS e tivemos necessidade de ir ver o mar, de parar, de respirar porque nos fazem perguntas muitas difíceis. Chegámo-nos a perguntar se tudo não poderia ser feito de outra maneira. Hoje, com alguma distância, entendo que um processo de adoção tem de ser duro. Estamos a falar de uma realidade dura e não pode ser feito de outra maneira senão realista e rigorosa”.
Apesar de duro, Joana e Miguel nunca tiveram dúvidas sobre se continuavam ou não. “Tivemos medo, muito medo”, confessa, mas tinham tomado uma decisão de forma consciente. Neste processo todo, perceberam também que “muito se fala de adoção, nos direitos dos pais, mas não é disso de que se trata. Estamos a falar de crianças. E essas é que têm direito a uma família. Esta tem de ser a perspetiva, o que, para nós pais, é difícil, até na parentalidade biológica”.
Mas foi com esta perspetiva que se entregaram à adoção. Deram-lhes três dias para pensarem na criança de que lhes tinham falado. Foram três dias de “muita emoção, porque não nos queríamos influenciar um ao outro, queríamos respeitar os pensamentos do outro, mas os nossos pensamentos iam transitando entre o ‘claro que sim, vamos em frente’ e ‘o que estamos a fazer? O que é isto da trissomia 21? O que significa isto para a nossa família?'” Tudo isto, mais “um medo muito infantil: e se ela não gosta de nós?”.
No dia marcado para irem à SS, Miguel disse a Joana que não conseguia sair de casa sem falar, pelo menos, com o filho mais velho, as meninas ainda eram muito pequenas. A conversa com Henrique, na altura com 11, confortou-os. “Explicámos-lhe que havia uma menina que não tinha família e que tinha possibilidade de nós sermos a família dela. E ele respondeu-nos: ‘Se há uma menina no mundo que não tem família, tem de vir já para nossa casa.'”
A caminho o marido disse-lhe ainda uma das coisas mais bonitas que ouviu, e que ainda hoje usam muito nas suas decisões: “Já pensámos com a razão, e a razão é não. Já pensámos com emoção, e a emoção é sim. Agora, vamos fazer o que está certo. E quando ele diz esta frase não tivemos qualquer dúvida de que o certo era a Joaninha.”
“Foram impecáveis em todo o processo. Mostraram-nos logo uma fotografia dela. Agarrámo-nos a ela e tivemos de arranjar uma para cada um dos irmãos, andavam à bulha para a ver. Fomos buscá-la três semanas depois, a 15 de dezembro, e voltámos para casa a 18, quase no Natal.”
Tiveram de esperar que os filhos terminassem as aulas, tinham de ir todos, e assim foi. Para Joana Morais, “foi o melhor dos nascimentos, aquele em que recuperei mais depressa fisicamente”, mas muito emotivo. “Tivemos reuniões com as técnicas da cidade onde a fomos buscar. Estávamos nervosos. De tal forma que, à socapa, nos levaram a vê-la a dormir. Uma das técnicas pegou nela e pô-la nos nossos braços e disse-nos: ‘Têm cinco minutos.’ Foram os melhores cinco minutos da história. Estar com ela, nós os dois, e pensar ‘és nossa e nós somos teus’. Aqui tivemos a certeza de que iria correr tudo bem.”
E tem corrido. Passaram três anos, Joaninha sempre teve a particularidade de ser muito dada. “Foi fácil com os irmãos. Quando chegámos à instituição, ela estava a pintar no chão. Os irmãos entraram e sentaram-se à volta dela, começaram todos a brincar. Foi automático. Ao terceiro dia, dei-lhe banho e depois o jantar depois não quis sair do meu colo para ir para o das técnicas. E elas disseram-nos ‘ela já vos adotou, não estão aqui a fazer nada. Amanhã vão para casa.'”
Chegaram ao Porto quase nas vésperas de Natal. A primeira preocupação foi sempre integrar a Joaninha pelos afetos, só depois “começámos a pensar na trissomia 21, mas ela foi acolhida por todos. Na escola sabiam da nossa história, aceitámos a ajuda de todas as pessoas, muita veio de casais que já tinham passado pela adoção, outra de famílias com filhos com trissomia. Todas foram importantes para crescermos”.
Hoje a adoção não é assunto. “Foi uma história, como foi o dia da maternidade de cada um dos outros filhos. Os miúdos até ficam cansados quando lhes falam da adoção. A Joaninha é irmã deles. Sabem que tem uma história, que é a história dela, que é uma história boa, que nos orgulha e que a contaremos sempre como a estamos a contar agora”, admite Joana Morais e Castro.
A verdade é esta: a adoção é uma história boa e foi isso que os motivou a dar o seu testemunho neste Dia Mundial da Criança. “Não nos é fácil expor. Sabemos qual é o outro lado da exposição e temos receio, esperamos saber equilibrar. Mas, por outro lado, se houver uma criança que precise de ajuda e uns pais, que embora tenham dúvidas decidam dar-lhe uma família, porque nos ouviram ou sentiram a nossa felicidade e alegria, só isso já valeu a pena.”
Para a família de Joana e Miguel “todas as crianças levam nos braços o futuro da humanidade”. Por isso, acham que “nos devemos responsabilizar por todas elas, não só pelos nossos filhos”.
Neste momento, em casa de Joana e Miguel há quatro filhos. E a próxima missão de família é irem em junho, durante um mês e meio, para a província de Manjacaze, em Gaza, Moçambique, como voluntários e estar ao serviço de quem precisa. “Todos os filhos nos deram muita coisa e os grandes mestres da inclusão são as crianças, neste caso os irmãos. São eles que nos ensinam a simplificar, a ultrapassar, a rir perante os obstáculos, mas uma das coisas que a Joaninha nos trouxe é que a família é um projeto para todos.”
Ana é sorridente, determinada, sabe bem o que quer e idolatra a irmã mais velha
Em pequena, Mariana viveu numa rua do Porto que albergava a instituição Frei Gil. Ela e os irmãos foram habituados pela mãe a irem levar roupas, brinquedos e a visitarem as crianças. Ela que é a mais nova de quatro irmãos ficou sempre muito sensível àquela realidade. “Sempre me vi com uma família grande e sempre idealizei um dia acolher uma criança.” Hoje, com 43 anos, e o marido, Martim, a fazer os 44, têm uma filha biológica e outra do coração, Constança, com 6 anos, e Ana de 4.
Mariana e Martim conheceram-se no Porto, também ainda jovens, apesar de ele ser dos Açores. Namoraram nove anos, estão casados desde 2007, e sempre falaram, embora subtilmente, deste projeto de vida. “Não era propriamente pelo desejo de maternidade, era pelo desejo de poder ajudar uma criança, de lhe dar uma família”, assume Mariana.
Um dia decidem avançar, mesmo antes de terem filhos biológicos, só que logo após terem terminado todo o processo de candidatura Mariana engravidou de Constança, que nasceu em 2012. Nessa altura tiveram de suspender o processo, “foi-nos dito que tínhamos de vivenciar a situação. Não percebi, achei que poderíamos continuar com o processo, mas acatámos”.
Um ano depois, em 2013, voltaram a dizer às técnicas da Segurança Social do Porto que queriam continuar com o processo de adoção. O tempo foi passando, eles estavam disponíveis para receber irmãos e crianças até à idade escolar, mas Mariana estava a perder a esperança. Em 2017, não tinham resposta. “Tinha dito ao meu marido que só esperaria até aos 45 anos, se não acontecesse até lá, desistia.”
Em fevereiro desse ano, quando já não esperava, recebeu um telefonema da Segurança Social a dizerem-lhe que havia uma menina de 2 anos e meio que tinha sido retirada à família e que se enquadrava no perfil deles. “Fui eu que recebi o telefonema e foi um choque. Por muito que se pense na adoção, depois de estarmos tantos anos à espera, recebe-se uma notícia destas e é um choque, mas um choque bom”,reforça.
A partir daquele momento, confessa, “não pusemos sequer a hipótese de recusar. Tínhamo-nos disposto a adotar. Portanto, recebíamos o que nos calhasse, é como os filhos biológicos, não vamos escolher, é o que nos cai na rifa”, ri-se. “É claro que idealizámos muita coisa, eu também tinha idealizado ter uma família com quatro filhos e não os tive. A vida é o que é”. Em 15 dias voltaram a ser pais. “Tivemos de preparar a Constança. Já tínhamos falado com ela sobre esta situação, mas não a podíamos preparar antes porque não sabíamos se algum dia viria a acontecer.”
“Não vou pintar um cenário cor-de-rosa. A nível emocional foi muito difícil, mas não me arrependo de nada. Não vejo a minha vida sem ela.”
Constança sempre disse que gostava de ter uma irmã, e foi isso que lhe calhou, uma irmã que hoje a idolatra. Mariana e Martim tiveram de avisar no trabalho o que se estava a passar, tiveram de tratar de toda a logística, mudar o quarto de Constança, envolver a família toda e os amigos também neste processo. “A Ana foi muito bem aceite por todos e na família direta sempre falámos abertamente desta situação.” Aliás, para Mariana e Martim o processo de adoção tem de ser muito aberto, senão pode ser pior. É assim que os técnicos também recomendam. “Temos de lhe contar. Hoje está com 4 anos, está connosco quase há dois e já lhe vamos dizendo que a Constança veio da barriga da mãe e a Ana do coração.”
Mariana e Martim, ambos a trabalhar numa instituição universitária, revelam que, apesar de sempre terem falado de adoção, os primeiros tempos não foram fáceis.
Na altura, ficaram com duas filhas, a biológica tiveram nove meses para se adaptar à ideia, para aprender a amá-la, quando se trata de uma adoção, “temos de amar de repente. Sou sincera, é um processo que emocionalmente não é fácil. Dia a dia vamos aprendendo a amar aquele ser, a vê-lo crescer e a construir uma relação. É um crescimento, uma evolução”. No fundo, sublinha, “o que acontece com qualquer filho biológico, mas uma coisa é transportá-lo na nossa barriga durante nove meses, preparamo-nos para ele, outra é ser em 15 dias”.
Ao fim destes dois anos, não imagina a sua vida sem ela, não percebe sequer como é possível haver pessoas que depois devolvem as crianças, mas reconhece que “grande parte da integração de Ana na família se deve à irmã. “Na altura, a Constança tinha 4 anos e foi muito bom vê-las logo juntas, a sua cumplicidade, a relação que começaram a construir.”
Ana é hoje uma criança “alegre, sorridente, determinada, muito teimosa, apesar de pequena, sabe muito bem o que quer, adora a Constança e idolatra-a”. A Constança reagiu muito bem, não teve ciúmes. “Admirei mesmo esta faceta dela, espero estar a fazer um bom trabalho”, comenta a rir-se. “E a relação delas tem crescido.”
Constança nasceu surda e teve de fazer um implante coclear com um ano, depois terapia da fala, mas tem evoluído muito bem. “Está igual a um miúdo ouvinte da idade dela.” Neste setembro vai para a primeira classe, em novembro fará os 7 anos, mas isto porque “aos 3 decidimos atrasar um ano a passagem dela para a creche para consolidar bem a fala”.
Hoje a surdez não é um problema, não afeta em nada a comunicação entre elas. “À noite, quando tiro os aparelhos à Constança, a Ana, que fala muito, continua a falar com ela, r eu digo-lhe: ‘Não vês que ela não está a ouvir?’ E ela responde sempre: ‘Está, está mãe. Ela percebe tudo o que eu digo.'”
A família vai ficar por aqui. Mariana diz: “Não posso estar a afirmar com certezas, porque só daqui a muitos anos, quando ela for grande e adulta, é que poderei tirar ilações se foi uma adoção feliz, mas, neste momento, é. E o que mais deseja para um dia da criança é que todas pudessem ter o abraço de uma mãe e de um pai.”
Manel é carinhoso, Diniz sensível, Alexandra um furacão
Catarina e Rui foram pais de três crianças em poucos minutos. O pai dela também tinha sido adotado e este projeto sempre teve presente na sua cabeça. Teve a sorte de encontrar Rui, que vinha de uma família de cinco filhos, quatro irmãos, e que sempre pensou o mesmo. Levaram algum tempo até avançaram para este projeto de vida, mas há um ano que os receberam e não têm palavras quando ao fim de uns meses, no seu dia de anos, Manel, o mais velho, lhe disse: “Mãe, gostava mesmo de ter saído da tua barriga.” Para Catarina, de 35 anos, isto era sinal de que ele estava integrado.
Catarina e Rui conheceram-se muito novos em Santarém. Ele tinha 19 anos, ela menos. Cada um seguiu as suas carreiras, ela a de enfermagem, hoje especialista em reabilitação, ele a de militar na GNR.
Começaram a pensar em filhos em 2013. Tinham a ideia de primeiro ter filhos biológicos, e só depois partirem para a adoção. Mas, como diz Catarina, “o destino trocou-nos as voltas. Era difícil termos filhos biológicos e decidimos ir para a adoção”. Deram entrada com o processo de candidatura em outubro de 2015. Passaram pelas sessões de esclarecimento, pela avaliação, pela formação do perfil.
A família e os amigos foram todos muito recetivos à ideia, a mãe de Catarina foi a primeira a dizer-lhe para avançar. Ela tem mais duas irmãs, Rui mais quatro irmãos. Queriam uma família numerosa.
O perfil traçado por eles para adotar também foi mudando ao longo do processo, tornando-se mais abrangente. Catarina conta: “Logo no início, e olhando para as estatísticas de quantos casais há e de quantas crianças há para adoção, ficámos desmotivados. Achámos que podia nunca acontecer, mas não desistimos. Isto é importante para outros casais. Nós fomos em frente e alargámos os requisitos para termos uma criança ou mais. Por exemplo, eu achava que o melhor era receber crianças até aos 5 ou 6 anos. Porquê? Não sei. Hoje, e gostava de passar esta mensagem, olho para o meu filho Manel e penso: ele tinha 7 anos, podia nunca ter sido adotado. Ele merece uma família. É importante que as pessoas pensem nisso.”
Pouco tempo depois de o processo estar concluído são surpreendidos, numa sexta-feira ao final da tarde, quando já viam televisão, com um telefona da Segurança Social. Rui atendeu e pôs o telefone em alta voz. Naquele momento ficaram a saber que havia três irmãos, dois rapazes e uma menina na lista de adoção, que encaixavam no perfil deles.
Tinham até segunda-feira para decidir. Assim que desligaram, Catarina disse a Rui: “Gostava de avançar.” E ele respondeu-lhe: “Estava com medo de que dissesses que não.” Voltaram a ligar de seguida à técnica, e “ela respondeu-nos que sabia que a reação ia ser esta”.
Mas dias depois ficaram a saber também que havia mais três casais à sua frente. Eles não teriam hipótese. No Natal, os três irmãos ainda estavam na cabeça deles. “Lembro-me de dizer às minhas irmãs: ‘A parte boa é que nesta altura já estão numa família e felizes.'”
O ano passou e chegou 2018. Tudo estava a mudar na vida deles. Catarina deixou o Hospital de Santarém, onde estava a sentir-se exausta, para ir para um centro de saúde. Rui, que sempre trabalhou na área da violência doméstica, passou também para outro serviço na GNR. A meio de janeiro, num sábado de sol, quando passeavam a cadela da família e iam beber um café, a vida deles mudou.
“Do outro lado da rua estava a técnica da Segurança Social. Cumprimentou-nos e ficou a olhar, mas atravessou e disse-nos: ‘Tenho uma coisa para vos contar que vos vai mudar a vida. Até parece que foi o universo que nos juntou aqui.’ E começou a dizer, lembram-se dos três irmãos que vocês queriam, mas que havia três casais à vossa frente? Eles voltaram ao sistema.” Rui conta a situação com todos os pormenores. Diz que nunca mais se poderá esquecer, porque num sábado de inverno cheio de sol, foram pais de três filhos.
Para Rui foi uma “alegria enorme. Pensei logo nas coisas práticas que havia a resolver, casa, quartos, carro”. Para Catarina, foi uma sensação de “tranquilidade. Estava certa de que era este o caminho. Senti uma força enorme para vencer todos os obstáculos que pudessem vir”.
Souberam mais tarde o que aconteceu aos outros casais, um tinha-se divorciado, o outro tinha ido para o desemprego. Sobre o terceiro nem se recordam. O certo é que as técnicas de Santarém assim que viram que as crianças tinham voltado ao sistema disseram que havia uma família interessada.
“Foi o destino. Aqueles eram os nossos filhos. Isso mesmo disseram às técnicas quando voltaram a perguntar-lhes se queriam avançar: “‘São nossos, ainda não os conhecemos e já os amamos.”
Esta informação era para lhes ser passada na segunda-feira seguinte ao encontro de rua, mas as coincidências existem. E logo ali ficaram a saber que havia esta hipótese, logo ali disseram que sim e para o processo avançar. Na segunda foram à SS para oficializar tudo. Souberam idades, nomes e um pouco da história das crianças. Pediram-lhes uma fotografia da família para levarem às crianças. Na instituição disseram-lhes que os três dormiam com a foto, por isso quando lá chegaram no dia 20 março para os ir buscar já todos sabiam que eles eram os pais do Manel, na altura com 7 anos, do Diniz com 4 e da Alexandra com 3.
Quando chegaram à instituição eles não sabiam quem eram os filhos, havia cinco crianças numa sala. Assim que Catarina abriu a porta, “vieram os três a correr a gritar: ‘Pai, mãe'”, dizem com emoção. “Foi muito forte, mas naquele momento oficializámos a expressão: filho, filha. Olhámos para eles, sentimos-lhes o cheiro e todos os receios que tínhamos de que pudessem não gostar de nós, se desvaneceu.”
Ao fim de uma semana de integração vieram para casa. Tudo correu bem, apesar de “termos tido alguns desafios. Mas ao longo do processo as técnicas também nos foram preparando. Foram-nos sempre dizendo que um dia qualquer a cartada do ‘não quero esta família, quero outra’ iria aparecer”. Estavam preparados, aconteceu com Manel, o mais velho, foi o que mais testou, apesar de ser muito carinhoso. “Nesse dia, dissemos-lhe que aquela era a família dele para sempre, ele acabou a rir nos nossos braços.”
Manel é muito carinhoso. Chegou a casa dos pais quando ia entrar para a segunda classe e só fazia contas de 2+2. Um ano e pouco depois é um dos melhores alunos da turma. “A Catarina é muito prática e organizada no estudo com eles. Enquanto faço o jantar, eles estudam”, conta Rui. Diniz é o mais sensível, mas também o mais seguro, e muito inteligente, ficamos espantados com as observações deles. Alexandra é um furacão. Adora falar, cantar, rir, fazer ginástica. Para onde vai, conhece toda a gente.
Catarina e Rui nunca mais viram nada na televisão senão desenhos animados. Nunca mais dormiram bem ou ficaram sossegados, mas “não se compara a esta enorme alegria e felicidade.” Manel, Diniz e Alexandra estão felizes. Muitos lhes dizem que eles foram “pais coragem”. Eles não o encaram assim. “Sinto-me grata. É raro o dia em que vou dormir e não agradeça a alguém que me esteja a ouvir pelo que recebi, por este conto de fadas.”
Eles são uns pais babados e orgulhosos, os filhos são crianças felizes. Foi isso que os levou a contar a sua história. “Pode ser que alguém se identifique e ajude uma criança.”
* Trabalho inserido numa investigação Especial – Crianças em Perigo, a ser publicado durante o mês de junho no Diário de Notícias.