Notícias

Saber mais sobre Acolhimento Institucional de Crianças e Jovens, Apadrinhamento Civil e Adoção é uma forma de ajudar a resolver um problema sério.
Fique a par do que se passa através das notícias que têm sido publicadas.

 Ver todas as Notícias

15.05.2019 | DN

Quando o sonho que comanda a vida é o de arranjar uma família para quem precisa

Fez campos de férias com crianças e jovens acolhidos em instituições. E cedo percebeu que, afinal, já tinha um sonho, uma intenção, um objetivo: o de criar um projeto que ajudasse quem precisa de uma família. O projeto Amigos p’ra Vida apareceu quase 20 anos depois. No Dia Mundial da Família, aqui fica a história da advogada Sofia Marques.

Ana Mafalda Inácio (Texto) Diana Quintela (Fotos)

Maria, Marta, João, Mariana, Duarte e Francisca. Quem os vê nas docas naquele final de tarde de domingo não imagina que uns são filhos de Sofia Marques e de João Viana e que as duas mais velhas são afilhadas. Todos juntos são uma família. Foi isto que Sofia e João idealizaram, quando ainda jovens começaram a ser animadores na Candeia e a fazer campos de férias com crianças e jovens, que, se não fosse assim, não saberiam o que era um dia de praia, de campo, ou tão-só uma ida ao cinema ou ao teatro.

Sofia e João conheceram-se no colégio onde andavam, começaram a namorar aos 17 anos, quando ainda frequentavam o 12.º ano. Ambos seguiram Direito e se tornaram advogados. Ele em direito penal, ela na área da família e menores. Casaram-se em 2005. Sofia foi defensora oficiosa de regulações parentais de crianças em acolhimento, integrou a Comissão de Proteção de Crianças e Jovens de Lisboa Centro, e ficou sempre muito ligada à Candeia, associação que existe desde 1991 e através da qual começou a fazer campos de férias.

Cedo perceberam haver muitas crianças que precisavam de uma família, nem que fosse de uma família amiga, que os acolhesse temporariamente, ou de uma família que apenas apoiasse a que já tinham. Ano após ano lidaram com esta realidade sempre que voltavam aos campos de férias como animadores ou a outras atividades da Candeia. Sofia explica: “Começámos a fazer campos de férias quando andávamos na faculdade, em 1998, em regime de voluntariado. E, ao longo do tempo, começámos a perceber que havia uma necessidade grande de arranjar famílias que pudessem ajudar e integrar algumas destas crianças e jovens.” E isso passou a ser um objetivo.

“Amigos Pra Vida é um projeto que é muito fácil de replicar. Basta querer ajudar crianças e gostávamos que outros se sentissem contagiados por este espírito.”to, instituições, por associações com fim de apoio social, IPSS, paróquias, colégios, etc”, alerta.

Casaram-se em 2005. Na altura, conta, deixou de fazer sentido os campos de férias. Portanto, começaram a participar em outras atividades, como levar crianças ao teatro ou ao cinema. Foi assim que conheceram Maria e Marta. Num sábado, em 2006, em que decidiram levar um grupo de cinco crianças a ver uma peça de teatro que estava no Tivoli, Amigos para Sempre. “Elas faziam parte do grupo, estavam com o irmão mais velho e eram muito pequeninas. Foi há 13 anos, hoje a Maria tem 15, faz 16 em julho, e a Marta 14. Ficámos fascinados. A nossa relação com elas começou nesse dia”, lembra. Começaram a acompanhá-las, tornaram-se família amiga e depois “foi a mãe quem nos convidou para sermos padrinhos de batismo das duas”.

Maria e Marta vivem com a mãe e têm mais dois irmãos, um mais velho e uma mais nova. Entraram na vida de Sofia e de João, mesmo antes dos próprios filhos biológicos. Elas viram nascer João, Mariana, Duarte e Francisca. Aprenderam a lidar com eles e depois eles com elas. Têm crescido todos juntos. “Gostam-se muito. Os nossos adoram quando elas ficam lá em casa ou quando as vamos buscar para atividades e têm uma particularidade, não discutem. Não têm aquela relação típica de irmãos que, às vezes, se picam e discutem. Eles não”, comenta Sofia. Hoje, já são Maria e Marta que, de acordo com a sua rotina e obrigações, gerem as idas para casa de Sofia e João, mas ainda é com eles que passam muitos dias da semana, fins de semana e até mesmo férias.

Para Sofia este sonho de ajudar a arranjar uma família a quem precisa começou cedo, mas depois, já advogada, mulher e mãe, tornou-o um objetivo. E, hoje, já pode dizer que “o sonho comanda a vida; e que sempre que o homem sonha; o mundo pula e avança como bola colorida entre as mãos de uma criança”.

Ela teve a ideia, que com a ajuda da Candeia e de muitos voluntários caminhou, avançou e se tornou realidade. Os Amigos p’ra Vida é um projeto que promove a integração familiar, começou em 2015, ainda só no regime de voluntariado, mas, em 2017, recebeu o prémio de empreendedorismo social do BPI Solidário. Agora tem duas profissionais na equipa, Sofia, que é a coordenadora e advogada, e uma psicóloga.

“O projeto integra a Candeia, uma IPSS que promove atividades com crianças e jovens em acolhimento desde 1991. Neste momento, somos só duas pessoas na equipa, porque trabalhamos com os técnicos dos tribunais e das casas de acolhimento que nos pedem intervenção”, explica, argumentando que o projeto que muitos ajudaram a construir, “é muito fácil de replicar. Basta querer ajudar crianças. Tanto pode ser replicado por casas de acolhimento, instituições, por associações com fim de apoio social, IPSS, paróquias, colégios. Gostávamos que outros se sentissem contagiados por este espírito”, alerta.

Em quatro anos já deram apoio

a 59 crianças

 

Desde 2015 até agora, o projeto já deu apoio a 56 crianças e jovens. Neste momento, está a acompanhar 39, das quais 17 estão com apoio familiar e abertura para posterior habilitação ao vinculo de apadrinhamento civil – a medida que tem o mesmo princípio da adoção e que permite manter os vínculos à família de origem -, quatro com idêntico projeto mas sem certeza de vínculo de apadrinhamento e dois em acolhimento temporário. Depois, há mais dez jovens com os quais estão a trabalhar o acolhimento até à possível autonomização, dois que tiveram projeto de adoção sem sucesso, por motivos de saúde e de idade, três que tiveram apoio para a reintegração na família biológica, mais dois que estão com apoios financeiros, e um que teve como projeto de vida a adoção.

Um único para adoção, mas que Sofia não esquece: “É o caso de uma criança com trissomia 21. O casal chegou até nós com a disponibilidade de acolher uma criança em fins de semana ou férias, mesmo que tivesse alguma deficiência. A senhora trabalha na área do ensino especial. Até já tinham pensado em adotar, mas diziam que se sentiram desmotivados por toda a burocracia. Mas isso acabou por acontecer, porque lhes dissemos que havia uma criança, que estava numa casa de acolhimento, e que já vinha de uma adoção falhada e que poderia precisar de uma família amiga como a deles. A família foi avaliada, conheceu a criança, passou a estar com ela ainda na casa de acolhimento, depois passou a levá-la aos fins de semana e depois ficou com a medida de confiança a pessoa idónea. E hoje já está adotada pelo casal. Uma criança que teve um processo de adoção sem sucesso, depois disto o sistema não a tinha sequer reintegrado na lista para nova adoção. Só se percebeu isso quando este casal se candidatou e falou na situação. Já lá passou algum tempo e tudo corre lindamente”, explica Sofia.

Hoje, já há tribunais que pedem a intervenção dos Amigos Pra Vida, no sentido de encontrarem uma família de acolhimento ou para a apadrinhamento civil para uma criança.

Mas nem todos os casos são assim, admite. De todas as situações que tiveram até agora só três “não tiveram continuidade” e poucas não evoluíram como gostariam. Por exemplo, “tivemos o caso de uma criança que precisa de uma família que a acolhesse temporariamente, mas que a família em causa só tinha disponibilidade para ser família amiga. Ou seja, para a ir buscar aos fins de semana ou durante as férias e não para viver com eles durante algum tempo”. Até agora, tem sido assim. Sofia diz que não têm a pressão dos números. Tudo graças também à entidade que lhes deu o donativo para funcionarem durante três anos. “Confiam em nós, não nos exigem números, sabem que estamos a cumprir a nossa missão.” E afirma com segurança: “No dia em que o donativo terminar, se não houver mais financiamento, o projeto não acaba. Voltamos ao regime de voluntariado ou integramos um outro projeto.”

Hoje, a intervenção dos Amigos p’ra Vida é pedida pelos tribunais, através de decisões judiciais, pelas CPCJ e pelas próprias casas de acolhimento. “Nós sensibilizamos e captamos famílias para a necessidade de serem voluntários e famílias amigas para as crianças e jovens que estão em casas de acolhimento. E aquelas que têm chegado até nós, tem sido mais porque o nosso trabalho vai passando de boca em boca. No início, apenas apresentámos o projeto em alguns colégios, para se poder controlar e acompanhar mais os candidatos a famílias voluntárias ou amigas.”

O processo é simples: “Quem chega fala das suas intenções e disponibilidade para apoiar estas crianças. Há uma avaliação nossa sobre a motivação, disponibilidade e capacitação. Começam por ser voluntárias numa casa de acolhimento e depois chega o momento em que lhes dizemos que podem ser família amiga de uma criança, que achamos que se enquadra no perfil em que estão dispostos a ajudar. Mas pode mesmo dar-se o caso de sermos contactados pelo tribunal e pelas CPCJ para ajudarmos a encontrar uma família para acolhimento ou apadrinhamento civil para determinada criança.”

Um projeto que não pode funcionar

das 09.00 às 17.00

Sofia diz que é os amigos Pra Vida é um projeto que faz com que a equipa e os voluntários estejam alerta 24 horas do dia. Isto porque, “temos de estar disponíveis para ouvir as famílias e intervir sempre que precisem de nós. Ainda há pouco tempo, tive uma situação em que às 11 da noite tive de sair de casa para dar apoio a uma família que estava a passar por uma crise com a criança que tinha em casa. É preciso ouvi-las e ajudá-las. Portanto, isto não pode funcionar só das 9 às 17.”

Sofia sabe também que a ideia ou conceito de famílias amigas não está regulamentado em lei – embora haja especialistas na área da psicologia da criança e juventude que a defendem como sendo uma medida fundamental a trabalhar. Por isso, diz, que só descansará “quando as famílias amigas se tornarem numa instituição familiar.”

“É através da vivência de uma relação que surgem muitas vezes as soluções para algumas destas crianças e jovens. Só que como estas famílias começam como voluntárias nas casas de acolhimento, temos tido o sistema, a Segurança Social e a Santa Casa a dizerem que não é possível porque não têm enquadramento legal. Tudo porque são famílias que não têm um carimbo do sistema, do Estado a dizer que estão certificadas. Mas, depois, quando é pedido ao projeto Amigos p’ra Vida pelo tribunal que arranjemos uma família amiga ou uma família com abertura para o apadrinhamento civil e isso é conseguido até descansam.”

O conceito de famílias amigas

tem de ser aceite

Por isso, alerta, “é um conceito que tem de ser aceite e trabalhado pelas entidades, associações, casas de acolhimento, magistrados e pelas próprias famílias biológicas. É preciso definir limites. Hoje sabe-se que, qualquer solução para uma criança e jovem que comece pela experiência de primeiro conhecerem-se e depois viverem em família, é sempre mais fácil de funcionar. E até de avançar para uma solução de apadrinhamento civil ou para outras soluções”.

E reforça: “O nosso objetivo é procurar soluções para estas crianças, sobretudo para aquelas que nunca perdem o vínculo às famílias biológicas, que não são capazes de tratar delas, mas que não as abandonaram e gostam delas. Procuramos também famílias que possam acolher bebés, para evitar que estes tenham de entrar em instituição.”

Um acolhimento que defende e diz que deveria ser uma medida mais incentivada e aplicada. Aliás, a medida existe desde 2009 na lei, já sofreu alterações em 2015 e, agora, há mais um projeto deste governo, que está em discussão pública até dia 27 de maio, com o objetivo de regulamentar ainda mais a certificação, o controlo e o acompanhamento de quem se candidate, mas que também irá permitir criar benefícios sociais e fiscais. No entanto, Sofia não tem dúvida de que com a lei que existe “já era possível recrutar famílias e aplicar a medida”.

Sofia e João foram animadores e família amiga, foi assim que este sonho de ajudar crianças em acolhimento nasceu e cresceu. Hoje têm duas afilhadas que gostam de ver crescer. Maria está no 9.º, Marta no 6.º. Maria diz que, no próximo ano, quer experimentar a área de ciências, embora não goste muito de Matemática. Marta pensa num curso relacionado com as Artes. “Gosto de pintar”, diz. “Temos de falar sobre essas opções todas”, remata Sofia, que é a encarregada de educação delas.

Naquele fim de tarde de domingo, o jantar é na pizaria. Os mais novos estão radiantes, brincam. João, quase nos 11 anos, o mais velho do casal, mete-se com as mais velhas, Mariana, de 9, rodopia à volta delas. Duarte, de 5, leva o elemento mais novo da família, uma cachorra a quem deram o nome de Cockie. Francisca, Quica, de 2 anos, passa de mão em mão e de colo em colo. Como dizem: Todos juntos são uma família.

* Trabalho inserido numa investigação Especial – Crianças em Perigo, a ser publicado durante o mês de maio no Diário de Notícias