A história de Maria, que espera há dois anos que o Estado lhe trace o destino

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Ana Mafalda Inácio (Texto) Reinaldo Rodrigues (Fotos)

Maria, quase 4 anos, aguarda por uma decisão do seu caso há dois anos. Está com uma família temporária, depois de ter sido retirada à mãe em emergência aos 15 meses. E o temporário eterniza-se.

 

Sofia e Duarte Ramos tinham um projeto de vida: acolher crianças em perigo. Queriam ser família de acolhimento, mas ficaram com a medida jurídica de confiança a pessoa idónea de Maria, vamos chamar-lhe assim, que receberam aos 15 meses. Era para ser por um mês, depois passou a ser por mais três, e já lá vão dois anos. Maria está crescer, feliz, quase com 4 anos, chama tia a Sofia, pai a Duarte e quer chamar manas às três filhas de ambos. Começa a fazer perguntas: “Tia, tu vais adormecer-me sempre, não vais?” ou “tia, este quarto vai ser sempre meu?”.

Perguntas que ficam sem resposta e que trazem angústias e preocupações reforçadas a Sofia e Duarte, mas que Maria, inteligente como é, insiste em fazer. Um e outro acreditam que o projeto de vida para Maria já poderia estar traçado. O deles é o de acolher crianças de forma temporária, portanto, com eles não poderá ficar. Por isso, acreditam que Maria já poderia estar com uma outra medida que não fosse de acolhimento em casa de pessoa idónea. E quanto mais tempo passa… “pior é para ela. Está a perder tempo de integração numa outra família”, explicam-nos.

Neste momento, e ao fim de dois anos, desde que Maria foi retirada à mãe biológica numa situação de emergência, Sofia e Duarte concordam em que veem “toda a gente, técnicos do Estado, tribunal, etc., muito mais preocupados com a mãe biológica, que, por muita vontade que tenha para a ter, não tem condições, tem falhado todas as recuperações impostas, do que com a Maria”. Afinal, “o que importa aqui? Não é sempre o superior interesse da criança? Não é o tempo que é fundamental para ela? O que é que ainda esperam mais?”.

Sofia diz isto quase em tom de revolta e de impotência, por nada mais poder fazer para ver Maria seguir o seu caminho. E foi por Maria que Sofia e Duarte aceitaram contar a história que os envolve a todos, porque “as crianças em risco ou institucionalizadas não se juntam, não gritam e nem podem manifestar-se em frente a São Bento. Só por isso é que aceitámos esta conversa”.

Ambos defendem que é preciso que se fale destas situações, que se saiba como funciona o sistema, como agem os serviços do Estado, o que é a lei e depois a realidade. Sofia e Duarte achavam que a sua intenção poderia fazer a diferença para algumas crianças, gostariam que assim fosse. A adoção estava fora de questão. “Temos uma família bem estruturada, não queremos aumentá-la e há tantos casais para adotar. Por isso, achámos que a diferença poderia passar por dar resposta numa área com mais necessidade. Ou seja, evitar que uma, duas, três crianças ou as que precisassem pudessem passar pela nossa casa e não por uma instituição. Afinal, parece não passar de um projeto naïf. É a sensação que temos.”

Sofia e Duarte já fizeram a diferença para Maria, que ali chegou num dia de janeiro de 2017, num carro da polícia e ao colo de uma das técnicas que a acompanham, da Santa Casa e da Comissão de Proteção de Crianças e Jovens (CPCJ) de Lisboa Oriental. “Vinha apática, sem falar, sem rir, parecendo uma lapa quando passava de colo em colo. É um momento que não se esquece”, diz Sofia. “Vinha queixosa, estava em carne viva da cintura até aos joelhos, com a zona genital bastante inflamada, o rabinho assado. Dormiu praticamente dois dias seguidos, apenas com interrupções para higiene e alimentação. Não se esquece isto…”, reforça Sofia.

Maria chegou até eles porque quiseram ser família de acolhimento. Era esse o projeto deles. Sabiam que tinham de se entregar, que voltariam às noites perdidas, porque as filhas já estão crescidas e muito independentes, às fraldas, às papas, aos horários de bebé. Tinham presente aquilo que lhes foi dito, logo no início, ou “quase exigido pelos técnicos”, de que não poderiam apegar-se a ela, porque um dia partia. Que não poderiam deixá-la tratá-los por mãe ou pai, porque teria sempre a mãe biológica, que iria continuar a ver, de 15 em 15 dias e depois semanalmente. Foi assim que foi decidido pelos serviços do Estado. Tinham de ter presente que aquela não era a família dela, que a situação era temporária. Tiveram de interiorizar tudo, pensando que Maria seria a primeira de várias crianças que iriam receber. Mas não…

Serviços de saúde e de educação não estão preparados para receber estas situações

Sofia e Duarte cedo perceberam que Maria não precisava só de colo ou conforto, precisava também de ser tratada medicamente. Foram ao centro de saúde para que fosse vista, mas nem sequer conseguiram inscrevê-la. “Logo aqui percebemos que os próprios serviços do Estado não estão preparados para receber uma criança à guarda do Estado e em acolhimento numa família. Tivemos de ir ao nosso pediatra.”

Maria foi diagnosticada com bronquiolite, otite aguda lateral, subnutrição, pesava oito quilos e tinha 74 centímetros, e uma anemia considerável. Tudo foi resolvido e ao fim de dois meses parecia outra. “Começou a comer, a correr, a rir, a falar e a dizer as coisas próprias para a idade.” Obrigou-os mesmo a fazer mudanças em casa que nem imaginavam. “Tivemos de mudar o lixo e a ração dos cachorros, ia lá buscar comida”, contam.

Sofia confessa que durante este tempo não pensou sequer que o termo de entrega que assinaram, o acordo de proteção e de promoção para a criança, já tinha terminado, mas também ninguém da CPCJ lhes tinha dito nada. Estavam ilegais e contactaram os serviços, então perceberam que afinal a situação poderia levar mais tempo e começaram a pensar que para o desenvolvimento de Maria e para a rotina deles era importante que fosse para a creche. Falou nisso às técnicas, disseram-lhe para procurar uma escola.

“Pensava que sendo uma criança à guarda do Estado eram elas que tinham de o fazer, mas pronto…”, conta. Aqui sentiram mais uma vez que os serviços do Estado não estão preparados para estas situações. “Corri todas as escolas, IPSS, colégios, etc. Bati a todas as portas para conseguir que a recebessem, explicando sempre que era uma criança à guarda do Estado, levando sempre todos os papéis para perceberem isso, mas nada interessava. Queriam o nosso IRS para definirem a mensalidade. Quando já quase não acreditava que fosse possível, encontrei uma escola.”

Maria foi matriculada na ABLA de Carcavelos como criança à guarda do Estado e pagando apenas aquilo que o Estado dava para ela, 153,40 euros. Passou a ir à escola. Na avaliação deste ano, a educadora cita Oscar Wilde para dizer que “a melhor maneira de tornar as pessoas boas é torná-las felizes”, e “é nesse sentido que acredito que a constante felicidade da Maria na sala faz de nós, o grupo dos Ursos, um grupo melhor, que aprecia boas gargalhadas e nos transforma em bons amigos uns dos outros”. Sofia lê a avaliação, guarda-a. Afinal, “isto quer dizer que estamos a fazer bem”.

Do acolhimento familiar à solução da instituição, não queriam acreditar

Um dia Sofia e Duarte foram convocados para uma reunião com a CPCJ. Pensaram que lhes fossem dizer que havia um projeto de vida para Maria. Havia, mas era uma nova solução temporária. “Não quis acreditar no que me estavam a dizer. A Maria ia ser encaminhada para uma instituição para ser mais acompanhada pelos técnicos. A minha casa esteve sempre aberta para a visitarem, para verem como estava, cumprimos tudo o que nos foi pedido e decidem que o futuro dela é numa instituição?”

Saiu de lá revoltada, encheu-se de raiva e escreveu uma carta à Provedoria de Justiça contando a história e questionando onde, neste caso, “está o superior interesse da criança?” Escreveu à própria CPCJ a dizer o que pensava, mas referindo que, se fosse de todo impossível evitar esta situação, que eles estavam dispostos a atenuá-la. Estavam dispostos a ir levá-la à instituição e a ir buscá-la ao final do dia para dormir onde estava habituada. Uma semana depois recebeu novo telefonema da CPCJ, comunicaram-lhe que no dia seguinte a iam levar à escola com as coisas dela, mas que no final do dia iria com um técnico que a levaria para uma instituição.

“Não queria acreditar. Ela ia ser levada por um técnico que não a conhecia, ninguém me perguntou o que ela comia, a que horas se deitava, se usava chucha, qual era o boneco preferido? É assim que funcionam os serviços do Estado?” Fez contactos, pediu ajuda, não podia aceitar uma coisa destas. Mas no dia seguinte foi levar Maria à escola, sem saber se iria buscá-la.

O caso chegou à Comissão Nacional de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo (CNPCJ) e, nesse mesmo dia, foram recebidos para contarem a sua versão dos factos. Saíram sem saber o que iria acontecer, quase à hora de saída da creche ligam-lhes. “Vá buscá-la. Esqueça o que lhe foi dito. A medida não vai ser executada.” O processo deixou a CPCJ e passou para o tribunal de Cascais, onde ainda está.

Em outubro de 2018 foram notificados para uma audiência, a mãe biológica também. Neste processo, Sofia confirma que a mãe aparece sempre, que se percebe que “tem imensa vontade de ver a filha, como é imensa também a falta de condições e de capacidade que tem para tratar dela. É acompanhada no Júlio de Matos, tem um outro filho de 18 anos que também já é. O pai nunca apareceu. Já lhe foram dadas várias hipóteses de recuperação, a última falhou outra vez. E penso: porquê esta insistência? A Maria está à espera e hoje já há outras medidas na lei que permitem que ela tenha uma família e que mantenha o contacto com a mãe biológica. Estão à espera de quê?”.

Sofia fala do apadrinhamento civil, que tem o mesmo princípio da adoção, mas que permite o contacto e a participação da família biológica, “acho que era a medida ideal”, comenta. Mas o destino de Maria não está nas mãos dela, como não está o facto de querer ser uma família de acolhimento com estatuto certificado.

Governo colocou em discussão pública o projeto de lei sobre famílias de acolhimento nesta sexta-feira. O objetivo é incentivar a medida e a que mais famílias se candidatem para acolher crianças.

Recusados como família de acolhimento por não terem piscina tapada nem extintores

O que têm feito e o que são, enquanto pessoas, parece não chegar. A meio do processo, Sofia e Duarte fizeram o que os serviços lhes disseram, foram à Santa Casa para se inscreverem mesmo como família de acolhimento. “Passámos por toda a avaliação psicológica, vasculharam a nossa vida familiar e financeira, mas não fomos aceites, não reunimos condições de segurança em casa. Tínhamos de ter a piscina tapada, os terraços vedados, extintor, etc. Caiu-me tudo, ainda não consigo entender. Isto é uma casa de família, vivem aqui as minhas três filhas, não é uma instituição, o que interessa ter isso tudo? O que interessa é que cada vez que brinca no jardim não está sozinha!”

Esta foi a última decisão que os deixou desolados. Sofia e Duarte já se questionam se quando Maria sair voltam a meter-se noutra situação. “Depois de tudo o que temos passado, além de tudo o que sentimos, há muitos dias de trabalho perdidos, muito tempo de família perdido.”

Todas as semanas Maria vê a mãe biológica durante uma hora. “É uma hora que passa, mas houve alturas em que ela chegava à Segunda Circular e desatava a chorar”, mas todas as semanas aumenta o seu receio de que ela “possa voltar para o seu meio de origem. Essa é a minha preocupação também, que o tribunal possa decidir dessa forma”.

À pergunta se já imaginaram como vai ser o dia em que Maria seguir caminho, Sofia e Duarte dizem que não pensam nisso. “Na altura logo se vê como é que se lida com a situação, ainda não sabemos qual vai ser a decisão do tribunal.” Mas, ao fim deste tempo, Sofia e Duarte gostavam de poder manter o contacto com Maria.

Entidades não falam do caso

O DN contactou o tribunal de Cascais, que tem agora o processo de Maria. Foi-nos dito que não poderiam dar informações, devido à natureza do processo, que “é sigiloso”, mas soubemos que ainda não há decisão. Aliás, “se houvesse já os senhores que têm a medida de confiança a pessoa idónea teriam sido notificados”.

Da CPCJ de Lisboa Oriental, o presidente Rui Esteves aceitou falar ao telefone com o DN, na base da confiança e para explicar também que não pode falar do processo em concreto. “Na verdade, já não é competência da CPCJ e tem carácter de confidencialidade nos termos da lei.” Rui Esteves só confirmou que o processo da criança, a quem chamámos Maria, partiu dali, que a criança foi entregue a um casal com medida de pessoa idónea e confiança e que transitou para o tribunal de Cascais. Mas quando lhe dissemos que a criança está bem afirma que “isso é o principal”.

O DN contactou ainda a Comissão Nacional de Proteção de Crianças e Jovens, enviou ume-mail com perguntas para tentar esclarecer mais este caso, mas ainda não obteve resposta.

Começaram a fazer voluntariado, falaram com as filhas e avançaram para o acolhimento

Há muito que Sofia e Duarte tinham este projeto. Começaram por fazer voluntariado numa instituição no Estoril, “era difícil sair de lá, as crianças agarravam-se às nossas pernas. Foi quando começámos a pensar que, se calhar, eram aquelas que mais precisavam de uma família que as recebesse enquanto não tivessem um projeto de vida”.

Falaram com as filhas sobre o assunto. Não foi tão fácil quanto pensavam. Mostraram fotos de meninos que precisavam de ajuda e a ideia foi aceite logo pelas mais velhas. Eles começaram à procura de informações sobre como poderiam avançar para este projeto. Foram à Santa Casa, mas não moravam em Lisboa. Recomendaram-lhes ir à Segurança Social. “Fomos e quando explicámos ao que íamos disseram-nos que isso era para crianças deficientes ou muito mais velhas. Se quiséssemos adotar era uma criança, era diferente. Agora para acolhimento familiar ‘não estamos preparados para fazer isso’. Mas não nos disseram que era de todo impossível.”

Enquanto esperavam, Sofia recebeu um e-mail que lhes dava a conhecer a associação Amigos para a Vida, que trabalha com famílias amigas. Foram ver o que era. Inscreveram-se e, aí sim, começaram a receber respostas. Primeiro foi um menino, que acabou por não poder ir, depois uma menina de 2 anos, para quem a mãe recusou este tipo de acolhimento, e por fim Maria.

Sofia recorda o dia. “Estava a trabalhar e recebo um telefone da associação a dizer: ‘Sofia, temos aqui o caso de uma menina de 15 meses. É uma situação urgente. Pode ser? Eu falei com o meu marido e decidimos avançar. Eram umas três da tarde e disseram-me que a iam levar pelas 17.00. Foi tudo a correr, mas a essa hora estávamos em casa. Recebemos a Maria. Depois da entrega ninguém mais nos perguntou o que quer que fosse, uma semana depois fui eu que enviei um e-mail para a associação e para a CPCJ a relatar o estado dela.”

Durante este tempo, Sofia e Duarte sentiram os olhares críticos, até de pessoas chegadas, por estarem a fazer aquilo, não o tratar da criança, mas por tudo o que têm passado para dar o melhor à Maria, que está à guarda do Estado, mas sem o apoio deste. “Entregaram-na e pronto. Não queremos dinheiro, mas ao menos que se preocupassem com ela.” Contam que têm amigos com o mesmo projeto de ser família de acolhimento, alguns já desistiram ao assistir a todo este processo.

O que compensa é que hoje Maria chega da escola, escolhe o colo da tia, brinca com Rita, Marta e Sofia, de 16, 14 e 10 anos, corre pela casa, dá ordens, ri, salta, faz ginástica e ensaia espetáculos com a Socas. Já manda “o pai Duarte” arrumar as coisas, adora a Rosa, a empregada e os cachorros da família. Está no seu ambiente. Fica sentada para assistir à conversa, ou melhor, interromper a conversa: “Tia, sabes que hoje quis vomitar”, diz-lhe mexendo-lhe na cara. “E vomitaste?”, pergunta Sofia. “Não.” “Boa, Maria. Agora vai brincar um bocadinho.” Ela vai…

De olhar doce, caracóis finos e escuros na cabeça, corpo esguio e ágil, chega naquela tarde a casa com Rita e Duarte, que lhe traz a mochila da creche, onde já está inscrita de novo. Maria aguarda o destino que será traçado pelo tribunal.

Famílias de acolhimento vão ter direito a benefícios fiscais, faltas, baixas e abonos

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Há muito que se fala de mudanças na Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo sobre famílias de acolhimento. Agora vai haver novas medidas. O projeto de decreto de lei está em consulta pública a partir de hoje e por um mês.

Uma criança tem direito à educação, à saúde e ao bem-estar. Tem direito à proteção, à participação e à não discriminação. Tem direito à sobrevivência, aos cuidados adequados e ao seu desenvolvimento. Uma criança tem direitos. Ponto. Tem direito a que, em todas as situações ou decisões da sua vida, os intervenientes que nelas participem tenham em mente que acima de tudo é “o seu interesse superior” que deve estar sempre presente, como determina a Convenção dos Direitos da Criança, assinada pelas Nações Unidas a 20 de novembro de 1989.

 

Mas a verdade é que nem todas as crianças têm direito a ter direitos. Nem todas têm direito a nascer e a crescer com acesso aos cuidados básicos, nem tão-pouco com o direito a ter colo, mimo e afeto. Ainda é assim 30 anos depois da Convenção da ONU e depois de tantos e tantos especialistas alertarem e confirmarem que o “colo é tão importante quanto o leite” ou, por outras palavras, que “as crianças que recebem colo serão adultos mais confiantes”.

Em Portugal, em 2017, havia 7553 crianças e jovens que estavam à guarda do Estado, por, num momento qualquer da sua vida, ter sido considerado que estavam em perigo. Já foram mais, em 2016 eram 8175. Há quem diga que a redução se deve ao facto de “termos cada vez melhores pais”. Assim se espera. Mas há quem defenda que ainda são demasiados os que esperam numa instituição ou em outra forma de acolhimento o regresso à família de origem ou por outro projeto de vida, como a adoção ou o apadrinhamento civil.

 

Há quem defenda que uma criança ou um jovem, enquanto espera que o sistema funcione e lhe encontre um caminho, um projeto de vida, como define a lei de proteção, deve ter o direito de poder viver, experienciar, o acolhimento numa família que a proteja, que dela cuide, que a acarinhe.

“Um bebé precisa de colo”, “uma criança precisa de mimo”, “uma criança precisa de uma família”, mesmo que não seja a sua. Tantas vezes se ouve frases como estas da boca dos próprios técnicos que trabalham na proteção de menores. Mas o certo é que hoje a principal medida de acolhimento de uma criança ou de um jovem em perigo ainda é o acolhimento residencial – ou seja, a institucionalização, seja bebé, criança até aos 6, 10, 12 ou 16 anos.

 

© Leonel de Castro/Global Imagens

Basta referir que das 7553 crianças e jovens no sistema, 6583 estavam institucionalizadas e só 246 encontravam-se em acolhimento familiar. Ou seja, 246 crianças e jovens acolhidos em 175 famílias, de acordo com os dados do último relatório CASA. Nenhum na área de Lisboa, já que aqui não há uma única família de acolhimento. O mesmo relatório refere que a medida tem sido aplicada mais no Porto, na Madeira, em Vila Real, Braga, Viana do Castelo, Coimbra e Aveiro.

As famílias de acolhimento estão na lei de proteção de menores desde 2008, mas, e como assume fonte do Ministério do Trabalho, da Solidariedade e da Segurança Social, “tem sido uma realidade pouco trabalhada, embora não se esteja a partir de um vazio”. Daí que tivesse sido necessária “uma reflexão aprofundada sobre o que devem ser famílias de acolhimento para se poder reincrementar a medida”, explicou a mesma fonte. Reforçando: “A intenção é que a criança seja acolhida num ambiente familiar, como qualquer outra criança, e numa lógica de apoio e de reforço das suas competências por um período, mas com vista a uma situação mais sólida.”

Foi nesse sentido que o MTSSS criou, em 2017, um grupo de trabalho que integra técnicos da Segurança Social, da Santa Casa de Lisboa e da Casa de Pia de Lisboa, para refletirem e trabalharem uma regulamentação que adaptasse “esta medida a uma nova lógica”, explicou a mesma fonte. O projeto de Lei está pronto e em consulta pública a partir desta sexta-feira por um período de 30 dias.

Acolhimento familiar preferencial até aos 6 anos

O objetivo é tornar a medida mais cativante, torná-la alternativa ao acolhimento residencial e até mesmo prioritária e até preferencial para crianças até aos 6 anos. Por isso, a ideia é poder criar uma bolsa de famílias de acolhimento, que serão avaliadas, selecionadas e recrutadas pelas entidades competentes, em todo o país e de acordo com as necessidades existentes, “e sempre privilegiando a proximidade com a família de origem ou o meio natural de vida da criança ou jovem em causa, se não houver indicação em contrário”.

Mas para colocar em prática a medida, passados estes dez anos, houve mesmo “a necessidade de mudar o paradigma do que é o acolhimento familiar e ao que obrigava, havendo necessidade de alterar alguns dos seus pressupostos”.

Uma família que acolha uma criança com menos de 6 anos receberá 601,35 euros, com mais de 6 receberá 522,91.

Uma das principais mudanças prende-se com o facto de, até agora, quem se candidatasse a família de acolhimento tinha de se inscrever como trabalhador independente, o que exigia também contribuições e um contrato de prestação de serviços. Agora, quem se candidate e for aceite não terá de passar por esta modalidade. Mais: terá acesso a direitos sociais, como faltas, baixas médicas, em caso de doença, e acesso a todas prestações a que uma criança tem direito, como o abono de família.

Neste projeto está ainda consignado que estas famílias terão direito aos benefícios fiscais previstos no Código do Imposto sobre os Rendimentos das Pessoas Singulares e no Estatuto dos Benefícios Fiscais. E porque “a situação acarreta encargos”, o Estado compromete-se também com a atribuição de um apoio pecuniário por criança ou jovem acolhido, correspondente a 1,2 vezes o valor indexante dos apoios sociais.

“Estes são os valores que entendemos necessários para que uma família possa fazer face às despesas quando tem a seu cargo uma criança. A estes acrescerão todas as prestações sociais como abono de família, bonificação por deficiência, subsídio de assistência à terceira pessoa, etc.”, pormenorizou a mesma fonte.

Educação e saúde devem garantir serviços

Este projeto de lei tem como objetivo também agilizar alguma das burocracias e dos entraves detetados em algumas situações de crianças acolhidas que depois não recebiam cuidados de saúde nem de educação básicos de forma imediata. Por isso, a lei define que os serviços do Ministério de Educação devem garantir, em tempo útil, a efetiva inclusão escolar e a oferta formativa adequada a estas crianças e jovens. Em relação aos serviços do Ministério da Saúde, refere mesmo que devem priorizar o acesso destas crianças.

“Com a atual legislação pode haver dificuldade em inscrever uma criança numa escola a meio do ano, na zona de residência da família de acolhimento, mas esta situação vai ficar inscrita na lei. Fizemos um levantamento presencial junto das IPSS que têm acordos de cooperação com a Segurança Social para se perceber quais eram as maiores dificuldades para que pudessem ser corrigidas com esta nova legislação. E estamos já a trabalhar neste sentido com os outros ministérios”, garantiu ao DN fonte do MTSSS.

 

Quem pode candidatar-se

O projeto em discussão estabelece que pode ser candidato a família de acolhimento “pessoa singular, duas pessoas casadas entre si ou que vivam em união de facto, duas ou mais pessoas por laços de parentesco e que vivam em comunhão de mesa e habitação”. Pelo acolhimento familiar ficará responsável um dos elementos da família, mas estas não poderão ter “qualquer relação de parentesco com a criança ou com o jovem”.

No documento, lê-se ainda que cada família poderá acolher até duas crianças ou jovens, mas a título excecional e devidamente justificado poderá acolher mais. Os candidatos deverão ter idade superior a 25 anos e inferior a 65, não serem concorrentes a adoção, terem condições de saúde física e mental e possuir preparação e motivação afetiva para ser família de acolhimento e condições de habitabilidade, etc.

As famílias serão avaliadas e recrutadas pelas entidades competentes, a Segurança Social e a Santa Casa de Lisboa, que terão de gerir as vagas neste tipo de acolhimento a fazer o acompanhamento. Cabe-lhes também divulgar a medida através do desenvolvimento de campanhas para a captação de famílias candidatas.

Na lei estão ainda definidos os direitos e os deveres quer das crianças e dos jovens acolhidos, quer das famílias de acolhimento, como das de origem.

A medida estará em discussão pública até ao final de maio, para que os contributos dados pela sociedade possam ser analisados pelo ministério e contemplados ou não na versão final. Só depois será agendada a discussão e a aprovação em Conselho de Ministros. Em relação à data para a entrada em vigor, “não possível indicar”, refere a mesma fonte. Como não é também possível indicar o número de famílias necessárias para acolher as crianças e jovens a quem a medida deve ser atribuída.

Uma coisa é certa: de acordo com a lei, quando a medida for executada já deve ter por base a “previsibilidade da reintegração da criança ou do jovem na família de origem ou em meio natural de vida”; quando não for possível esta solução, está também previsto “a execução e a preparação da criança ou do jovem para a adoção ou a autonomia de vida”.

O acolhimento familiar está previsto na lei e consiste “na atribuição da confiança da criança ou do jovem a uma pessoa singular ou a uma família, habilitada para o efeito, visando proporcionar à criança ou ao jovem a integração em meio familiar estável que lhe garanta os cuidados adequados às suas necessidades e ao seu bem-estar.”

Ao DN, em entrevista anterior à divulgação deste decreto-lei, a diretora da Unidade de Adoção, Apadrinhamento Civil e Acolhimento Familiar da Santa Casa de Lisboa, Isabel Pastor, defende que a tendência para o futuro é que o acolhimento institucional seja desmantelado. “A meta é que dentro de dez, quinze ou 20 anos toda a criança com necessidade de acolhimento o seja em família.”

Ana Mafalda Inácio